Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

O Biedermeier galego. José Dionísio Valladares

Isabel Rei Samartim
jueves, 22 de abril de 2021
Íncipit do Vilancico galego para voz e guitarra, f. 106r da coleção Valladares. © 2021 by Isabel Rei Samartim Íncipit do Vilancico galego para voz e guitarra, f. 106r da coleção Valladares. © 2021 by Isabel Rei Samartim
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Em artigo anterior temos visto a reação burguesa perante a multiplicação dos conflitos bélicos com motivo da construção dos Novos Estados europeus e a mudança das oligarquias. Essa reação verificou-se socialmente no retorno dos combatentes às casas na procura da paz que não se conseguia nas frentes. 

Pieza enlazada

Esse regresso ao doméstico provocou um tipo de arte característico durante a primeira metade do século XIX, que na Alemanha foi chamado de Biedermeier e na Galiza vemos refletido no Senhor de Montenegro valleinclaniano. O pleito da Condessa de Oleiros por uma guitarra (1813-1817) é um exemplo de como a mudança de elites chocou contra a antiga legitimidade da nobreza galega. 

Agora veremos como se produz e quais foram as consequências artísticas do abandono das batalhas e a procura da pacificação numa das famílias galegas mais relevantes para a nossa história.

 José Valladares, senhor de Vilancosta

José Dionísio Valladares Gómez nasceu no lugar de Fontão, na paróquia de Santa Maria de Graba, concelho de Chapa, comarca de Trás-Deça, em 23 de junho de 1787 e morreu em Vilancosta, paróquia de Berres, concelho da Estrada, comarca de Taveirós, em 24 de março de 1864. De criança, estudou no Seminário em Lugo. Mais tarde, acabou os estudos de Direito em Compostela. Imediatamente anotou-se no primeiro Batalhão Literário, criado na Universidade em 1808 para combater as tropas francesas. Passou vários anos em combate e chegou a fazer parte do Quarto Exército formado por soldados galegos, dirigido pelo general Freire em 1814, quando libertaram Tolosa (Ferreirós, 2018). José Dionísio ganhou nove cruzes de guerra e o grau de Capitão de Infantaria. Ao regressar à Galiza, casou com María Concepción Gabriela Núñez Morciego (Vilancosta, 1786-1854) e foi morar à casa da mulher, a Casa Grande de Vilancosta, na freguesia de Berres, concelho da Estrada. Ali tiveram e educaram os filhos e filhas, em número de dez nascidos, ainda que somente sete chegaram à idade adulta: Jacoba, Marcial, Sérgio, Avelina, Luísa, Segunda e Isabel.

 Os trabalhos como juiz, procurador geral, intendente e governador em diversas localidades como Lugo, Ponte Vedra, Valdeorras, Ourense e Samora, mantiveram José Valladares longe da Casa Grande, lugar aonde sempre estava desejando regressar. Nalguns casos Marcial e Sérgio acompanhavam o pai, sendo que o resto da família preferia ficar na tranquilidade do lugar estradense. Com a colaboração dos filhos, José Dionísio Valladares participa na elaboração do mapa da Galiza de Domingo Fontão (1829) e nos estudos estatísticos de Pascual Madoz (1843), obras cujos originais se acham na biblioteca familiar. No seu retiro, em 1850 José Dionísio Valladares já reside permanentemente em Vilancosta, onde tinha ganhada a fama de atender devidamente as necessidades tanto dos lavradores e lavradoras da Casa Grande, quanto das gentes do lugar, pelo que ganhou uma bela quadra popular recolhida pelo filho Marcial:

O senhor de Vilancosta
só a ela tem apego
cuida dos seus lavradores
honra-se de ser galego.

A família Valladares

Fragmento do f. 121r da coleção Valladares com contradanças para violino e um desenho familiar. © 2021 by Isabel Rei Samartim.Fragmento do f. 121r da coleção Valladares com contradanças para violino e um desenho familiar. © 2021 by Isabel Rei Samartim.

Todos os filhos e filhas do casal Valladares-Núñez aprenderam a tocar diversos instrumentos musicais. Marcial sabia tocar piano, violino e guitarra. Igual que Avelina, que também tocava guitarra e piano. Sérgio era o flautista, cuja flauta transversal, construída por Michel Amlingue em Paris, ainda faz parte do património familiar. Também se conserva o fortepiano que tocavam Isabel, Luísa e Segunda. Todos e todas cantavam, e era habitual nas reuniões assistir à uma versão das schubertiadas, ou serões musicais onde os membros da família interpretavam os diferentes instrumentos. Estas valadarestiadas fizeram parte da história quotidiana de Vilancosta e no desenvolvimento dessa atividade, junto com outras como o desenho ou a literatura consideradas todas parte fundamental da educação de crianças e adultos, a família entesourou uma biblioteca espetacular e uma das maiores e mais curiosas coleções de partituras dos fundos galegos.

A música suaviza o costume

Primeira página do texto «La música suaviza las costumbres». Coleção Valladares. © 2021 by Isabel Rei Samartim.Primeira página do texto «La música suaviza las costumbres». Coleção Valladares. © 2021 by Isabel Rei Samartim.

José Dionísio Valladares foi também autor de não poucas cartas, textos diversos, poemas e belos desenhos conservados nos cadernos da biblioteca. Sobre música redigiu o texto intitulado La música suaviza las costumbres, que é um pequeno tratado de linguagem musical, um exemplo do papel fundamental que na altura tinha a música na educação da burguesia galega. 

Há não poucos indícios de José Dionísio ser também o autor da Esplicacion de los rudimentos de música apropiada á la guitarra para el uso de A. V., o método para guitarra escrito para a filha Avelina Valladares. É este um dos métodos mais antigos dos achados nos arquivos galegos, cujo manuscrito se conserva no Arquivo Histórico Provincial de Ourense, ao que se dedicará outro artigo.

O núme popular

Luna Sanmartín (2000) apresenta a Casa Grande como um lar cheio de gente: o casal, sete filhos e filhas, outros parentes, criados e várias lavradoras e lavradores podiam fazer num dia qualquer por volta das vinte pessoas a se reunirem na lareira onde comiam e jantavam todos juntos. Nessas ocasiões, que não faltavam, ouviam-se as canções, os ditados e os contos populares que todos aprendiam. O núme popular convivia com a vida fidalga dos senhores de Vilancosta e mutuamente se alimentavam. Não muito longe da cozinha, passando por uma sala intermédia, acha-se a Sala da Música, com o fortepiano chegado de Samora, em que não seria estranho ouvir as canções galegas, mais tarde reunidas no Cancioneiro que o filho Marcial dedicara às irmãs, ou as alvoradas e moinheiras para guitarra e para violino, que povoam as páginas da coleção.

 José Valladares, guitarrista

Fragmento do f. 66r da coleção Valladares a conter várias danças para guitarra, entre elas uma moinheira. © 2021 by Isabel Rei Samartim.Fragmento do f. 66r da coleção Valladares a conter várias danças para guitarra, entre elas uma moinheira. © 2021 by Isabel Rei Samartim.

Que José Dionísio Valladares era guitarrista é uma evidência não explícita, mas bem documentada nas numerosas páginas da coleção de música. A teor dos textos musicais, pode afirmar-se que ele aprendeu música de mestres eruditos, possivelmente nos tempos do Seminário em Lugo, instrução que pode ter-se ampliado na época da faculdade de Direito em Compostela. 

Lembremos que entre os fundos galegos há um grupo de partituras na catedral de Lugo que contém uma obra também recolhida na coleção dos Valladares, que pela sua importância trataremos em artigo à parte. A letra de José Dionísio Valladares aparece numa grande quantidade de música para guitarra e também para outros instrumentos, sendo de destaque o manuscrito do vilancico galego para voz e guitarra, uma melodia de composição erudita no estilo das de Melchor López (1759-1822), à que o petrúcio de Vilancosta teria acrescentado um acompanhamento para guitarra da sua autoria. Não se sabe quantas das obras deste fundo foram de criação própria. O que sim fica claro é que José Dionísio Valladares realizou uma intensa atividade musical que, conservada pela sua família até aos nossos dias, é hoje uma fonte imprescindível para a música galega.

Bibliografia
 Fernández Castro, J. A. (2015). Catálogo da biblioteca de don José Dionisio Valladares, efectuado polo seu fillo Marcial Valladares. Miscelánea histórica e cultural(18), 89-133.
Fernández Salgado, X. A. (2002). Marcial Valladares (1821-1903). Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela.
Ferreirós Espinosa, C. (2018). O legado dos Valladares de Vilancosta. Santiago de Compostela: Centro Ramón Piñeiro.
Luna Sanmartín, X. (2000). Ond’o sol facheaba ô amañecer. Vida e obra da cantora da Ulla Avelina Valladares Núñez. A Estrada: Edicións Fouce.
Rei-Samartim, I. (2018). O arquivo de música da família Valladares. A guitarra. A Estrada. Miscelánea histórica e cultural(21), 287-310.
Rei-Samartim, I. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela.
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