Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaAvelina Valladares Núñez
Isabel Rei Samartim

A poeta, música, fazendeira e filántropa Avelina Valladares Núñez nasce na Casa Grande do lugar de Vilancosta, em 23 de outubro de 1825, no seio duma família ilustrada, formada por María Concepción Gabriela Núñez Morciego (1786-1854), herdeira da casa familiar e natural de Vilancosta, e o seu marido, José Dionísio Valladares Gómez (1787-1864).
Quando ela nasce já tem várias irmãs e irmãos: Jacoba, Sérgio e Marcial, com o que conviverá praticamente toda a sua vida. Luísa, Segunda e Isabel viriam mais tarde. Carlos Ferreirós Espinosa (2018), segundo cronista da família, pois o primeiro foi o próprio Marcial Valladares, informa de que Avelina manifestava de criança uma clara inclinação ao estudo que não continuou de modo oficial, pois não lhe era permitido ir estudar a Compostela com os seus irmãos.
Depois ela dedicou-se à leitura de quantos livros lhe caíam nas mãos, tentando também desenhar como o pai. Nas inéditas Memorias de Familia de Marcial Valladares vemos que José Dionísio foi o primeiro professor de todos e todas as suas filhas.
Primeiros estudos de música
Foi com catorze anos de idade, durante a estadia da família em Lugo, quando Avelina Valladares começou a estudar música, possivelmente, na guitarra. Os seus primeiros poemas foram compostos aos dezoito.
Em 1844 acompanhou a família a Samora, onde durante os seis anos que demorou a estadia continuou a escrever poemas e iniciou os estudos de piano. O professor da família era o organista da catedral, Ambrosio Pérez. Em 1849, Avelina fazia parte da Secção de Música do Liceo Artístico y Literario samorano, junto com a irmã Isabel. No ano a seguir, em 1850, regressaram à amada Vilancosta.
Os cuidados da família e do património
Desde 1851, Avelina partilhou com a irmã Luísa, também poeta e boa pianista, e a pequena Isabel o governo da Casa Grande e o cuidado da mãe doente. O período de 1852 e 1857 é triste pelos falecimentos sucessivos de vários familiares, entre eles a mãe, a irmã Jacoba e o irmão Sérgio. Luísa casa em 1860 e vai morar a Santiso, na Terra de Melide, sem deixar a beira do rio Ulha que se divisa desde Vilancosta.
Avelina torna à composição em 1858 e a sua vida criativa floresce até 1862, momento em que o pai sofre a doença pela que falece dous anos mais tarde. Passado pouco tempo, ela recebe uma proposta de casamento, que recusa, colocando na frente a responsabilidade do cuidado familiar e do património. Assim, Avelina encarrega-se de casar a irmã Isabel, cuida da sua irmã Segunda, a quem ajuda a sair do convento onde não se integra.
Cuida, ajudada por Segunda, das suas tias Manuela, Gabriela e Vicenta. E entre tantos trabalhos, é em 1874 que volta a escrever por petição da irmã Isabel. Avelina, cujo primeiro poema data-se em 1844, escreveria até quase o fim da sua vida. Os seus últimos escritos pertencem aos últimos anos do século XIX.
Retrato de Avelina
Avelina nunca se deixou retratar, mas todos os biógrafos coincidem em que era uma mulher esbelta, alta, de olhos azuis e presença afável. Do carácter, todos afirmam que era uma pessoa boa, dedicada a fazer o bem para os outros, amante da sua família e senhora da sua casa. É possível que a sua condição católica, bem firme e presente na sua vida, ajudasse Avelina a assumir uma vida dedicada aos cuidados, mas o facto de ela ter recusado vários pretendentes ao casamento também indica que não foi uma vida resignada. Ao contrário, achamos em Avelina uma mulher inteligente, adulta, consciente de que a sua decisão de cuidar do património familiar implicava também o cuidado dos familiares, e isso era incompatível com a possibilidade de casar e ir morar fora de Vilancosta.
Carácter benéfico
O carácter benéfico de Avelina, provavelmente adquirido do pai, tanto para a sua família e património, quanto para a vizinhança de Vilancosta e da Ulha, ficam patentes nos prémios e distinções que obteve ao longo da vida. Como a Menção Honorífica ganhada na Exposição Agrícola realizada em 1858, pela apresentação de cultivos e gado das suas terras. Ou a Cruz da Ordem Civil de Beneficência concedida por Isabel II em 1864, pelo seu labor continuado no socorro das gentes pobres.
A memória de Avelina
A morte de Avelina Valladares lamentou-se com inúmeras louvas para a mulher que tinha sido tudo para tantas pessoas, como o querido sobrinho Laurentino Espinosa, que deixou escrito no seu diário que tudo lho devia a ela. Marcial referiu-se a Avelina como irmã muito querida e insubstituível. E o também escritor estradense Manuel García Barros escrevia em 17 de março, data do falecimento da poeta e música, que nesse dia choravam todos os galegos de bom coração, especialmente, os necessitados, “aos que socorria con man pródiga”. Pessoalmente, acho que foi o esforço benéfico de Avelina, os seus cuidados, os que permitiram chegar quase intata ao século XXI a Casa Grande de Vilancosta, com a biblioteca e a coleção de música, que hoje constituem um dos patrimónios culturais e musicais mais importantes da Galiza.
A obra literária
O biógrafo e editor dos poemas de Avelina, o estradense Xosé Luna Sanmartín (2000) estudou a obra literária da poeta e escritora, que trata todo o tipo de temas religiosos, também sociais como a emigração e a orfandade, e nacionais como o vale do Ulha e a Galiza. Avelina também escreve poemas e cartas em verso e prosa, dedicados à família e amigos, para celebrar algum acontecimento, às vezes por iniciativa própria, outras vezes respondendo a uma petição expressa. Os textos foram redigidos em castelhano e em galego, usando para o castelhano a proposta ortográfica de 1815, e para o galego a que o irmão Marcial explicou na sua Gramática (datada em 1892 mas não publicada até 1970) com uso de gês e jotas, demonstrando assim uma posição ativa a respeito da normativização da língua própria, que nos tempos do Rexurdimento, ou ressurgimento da consciência galeguista, revelava-se como um elemento fundamental para a dignidade da língua, da literatura e das pessoas galegas. O seu parente, o escritor Antón Losada Diéguez, colocou Avelina entre a “ergueita caste de Rosalia de Castro e de Concepción Arenal”.
Avelina Valladares, música guitarrista
A importância de Avelina Valladares para a história da guitarra galega não só radica no facto de ter aprendido a tocar o instrumento, ou de contar na sua coleção de partituras com mais de 130 obras para guitarra que ampliam o conhecimento e o repertório de autores como José de Naya, Rafael Botella, Basilio Basili ou Estanislao Ronzi, que dão a conhecer nomes novos como o de Julio Nombela, ou que representam um corpus guitarrístico galego próprio do seu tempo. A importância de Avelina Valladares como guitarrista é, sobretudo, por ser ela a primeira mulher galega com uma composição para guitarra do século XIX, registada, assinada e conservada. Porque outras guitarristas contemporâneas, como a talentosa Rosália Castro, com certeza também escreveram música para guitarra, mas infelizmente as partituras não chegaram até nós. Também, Avelina foi a recetora dum dos métodos para guitarra mais antigos dos conhecidos até agora, a Esplicacion de los rudimentos de música apropiada á la guitarra para el uso de A. V., cujo manuscrito se conserva no Arquivo Histórico Provincial de Ourense.
A obra musical
Ao falar da obra musical de Avelina Valladares é importante ter em conta que não se trata duma compositora profissional. As suas são as obras duma intérprete amadora com muito respeito pela música, que se inspira na paisagem da comarca da Ulha, onde se situa a Casa Grande, e agudiza a sua criação artística através das pessoas da família que lhe são mais queridas. Por isso, além de interpretar na guitarra e no piano as obras da coleção familiar, várias dedicadas a ela e às irmãs, deixou compostas quatro de criação própria: três para fortepiano e uma para guitarra. Tenha-se em conta que dado o nível de responsabilidade familiar com as obras artísticas, estas quatro peças musicais não seriam as únicas que Avelina criou, mas são as que ficaram no papel com a clara intenção de perdurar no tempo. O mesmo critério poderá aplicar-se à sua obra literária, pois todos os poemas e textos conservados coincidem em limpeza e pulcritude.
O fortepiano, adquirido durante a estadia da família em Samora e construído pela casa Hosseschrueders, em Madrid, por volta de 1840, foi tocado possivelmente por todos os membros da família. Avelina deixou três composições breves e bem construídas para fortepiano, que foram transcritas pelo irmão Marcial.
A primeira intitula-se Melodia e contém uma introdução (Lá m), primeira parte (Lentamente, Fá M) e segunda parte (Dolente, Sol m). Há anotada a lápis uma quarta parte, só a mão direita, que parece responder à rápida anotação de Marcial, como se Avelina improvisasse e ele quisesse ainda tomar nota de mais música.
A segunda obra para fortepiano é uma Valsa em Ré M, anotada por Marcial, a conter duas partes com repetições. A terceira é uma mazurca em Dó M dedicada ao querido sobrinho Laurentino Espinosa, filho da irmã Luísa e herdeiro de todo património dos Valladares, que foi Presidente da Câmara Municipal estradense.
A obra para guitarra de Avelina, intitulada La Soledad, consta de duas partes, em Fá M e Ré M, com repetições. Esta peça foi publicada em 2010, como anexo ao Cancioneiro do irmão Marcial, bem como na tese A guitarra na Galiza (2020). A sonoridade da segunda parte, em especial o uso dos baixos confere à obra um carácter intemporal, que associamos à paisagem divisada desde a parte de trás da Casa Grande, onde há uma galeria e um jardim com mesas de pedra.
Queremos imaginar Avelina a tocar a sua solidão, ou Soidade, querida e procurada, consciente, com a vista cheia do belo Pico Sacro e o horizonte luminoso do vale do Ulha, pois a própria autora liricamente nos diz:
Deste val deleitoso num recuncho
Loucuras doutro tempo recordando,
As horas docemente vou passando
Sem sentir que se vão para não volver.
E, livre da farândola das vilas
Que a mais duma cabeça enche de vento,
Deixo agora correr o pensamento,
Vagar no campo que me viu nascer. [...]*
Bibliografia
Ferreirós Espinosa, C. (2018). O legado dos Valladares de Vilancosta. Compostela: Centro “Ramón Piñeiro”.
Luna Sanmartín, X. (2000). Ond’o sol facheaba ô amañecer. Vida e obra da cantora da Ulla Avelina Valladares Núñez. A Estrada: Edicións Fouce.
Orjais, J. L. d. P. e Rei-Samartim, I. (2010). Ayes de mi país. O cancioneiro de Marcial Valladares. Baiona: Dos Acordes.
Rei-Samartim, I. (2018). O arquivo de música da família Valladares. A guitarra. Miscelánea histórica e cultural(21), 287-310. Disponível em:.
Rei-Samartim, I. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela.
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