Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaA violaria galega no último terço do século XIX
Isabel Rei Samartim

Neste artigo resumo as informações a respeito da violaria, ou construção de guitarras, durante o último terço do século XIX. Pelo seu interesse, algumas destas informações serão desenvolvidas em pormenor noutros artigos. Esta é a primeira vez que se aborda a exposição desta área da música galega e, como humilde intérprete, receio de ter lacunas que só especialistas na construção de instrumentos podem reparar. Portanto, animo às violeiras e violeiros atuais a continuar as pesquisas iniciadas, das que hoje deixo umas breves orientações.
O primeiro a ter em conta é que o facto de termos mais dados históricos numas épocas do que noutras não sempre significa que tenha havido maior, ou menor, atividade daquilo que se está a estudar. A informação que falta também fala por si mesma e outras informações paralelas podem ajudar a completar aqueles vazios históricos que ainda contém a nossa história. Por isso, seria pouco inteligente considerar, visto que as primeiras informações sobre construção de guitarras na Galiza são do último terço do século XIX, que antes dessa época não tínhamos violaria.
Nem parece sensato pensar que no país onde se conservam violas de mão esculpidas na pedra desde o século XII, seja só no final do século XIX que as gentes galegas começam a construir estes instrumentos. Mais ainda, sabendo que a madeira é uma matéria prima galega desde tempo antigo (Pérez Costanti, 1925-27). É mais lógico entender que, até agora, não temos desenvolvido como se deve a pesquisa sobre a arte da violaria e que, possivelmente, muita da informação esteja ainda à nossa espera em documentos que ainda não foram consultados.
Famílias de violeiros em Compostela e na Ponte Vedra
Na investigação, certamente superficial, que eu mantive sobre esta área da história da guitarra galega achei vários violeiros e violeiras que reclamam a atenção da Musicologia. Domingo e Jesus Villar foram dous violeiros compostelanos, possivelmente familiares, de quem temos notícia desde 1858, quando se realizou a Exposición Pública de Galicia (Catálogo, 1858, p. 92), em que Domingo Villar apresentou uma guitarra inglesa. Este instrumento foi popularíssimo na Galiza durante o século XIX. Na realidade é um cistre, mas tem todo o direito de se chamar ‘guitarra’ por ser este um nome genérico a abranger diversos instrumentos da mesma família. A guitarra inglesa entra em diálogo com a criação da guitarra portuguesa e com um episódio lindíssimo da história da guitarra galega que protagoniza a poeta Rosália Castro e que relataremos em artigo à parte.
Por sua vez, Jesus Villar Morales foi premiado como violeiro no Certame de Artes e Ofícios convocado pela Sociedade Económica compostelana (Revista, 1885). Anos mais tarde, o violeiro anunciava-se como construtor de guitarras, cítaras, bandurras e cordas metálicas para guitarras, pianos, alaúdes e bandolins (Gaceta de Galicia, 1889). A sua oficina situava-se na Rua Espírito Santo, 76. Jesus Villar, ou Vilar, estava casado com Josefa López Calvo e era porteiro secular da catedral, encarregado de organizar os ensaios da Capela de Música.
De Ambrosio Ordóñez, registado por (2003, p. 261), só sabemos que era fabricante de violas e bandolins em Corcubião.
E informação parecida temos de Luis Martínez, de quem sabemos que o filho era também construtor na Ponte Vedra do ano 1900, o que indica a existência duma família de violeiros nessa cidade no último terço do século XIX.
Do filho de Luis Martínez conserva-se uma guitarra na coleção de Félix Manzanero. Pela etiqueta recolhida em Romanillos e Harris (2002, p. 238) sabemos que a loja de Luis Martínez chamava-se Almacén de Instrumentos de Música Gramófonos y Discos e situava-se na Praça de Curros Henriquez, 2.
José Fernández Silva
A cidade de Ourense foi prolífica em guitarras e guitarristas, segundo se deriva dos documentos pertencentes à segunda metade do século XIX. Um dos violeiros ourensanos foi José Fernández Silva, que tinha uma fábrica de guitarras na antiga rua conhecida por Bajada de San Jerónimo, 124, e que hoje está desaparecida dos mapas e da memória ourensana.
Atualmente conservam-se várias guitarras construídas por Fernández Silva. Uma delas pertence ao violeiro canadiano Scot Tremblay, outra foi restaurada pelo violeiro italiano Marco Bortolozzo, uma outra foi conservada na Itália e tem sido recentemente adquirida pelo guitarrista e violeiro galego Eneas Freire. A quarta, datada de 1895, foi leiloada em Bruxelas, em 2018 (LotSearch). A quinta faz parte do Museu Nacional da Hungria, esta última é uma guitarra pequena que pertenceu à menina Kornélia Lotz, filha do pintor húngaro Károly Lotz (Gábry, 1969; Radnóti, 2006).
Também sabemos que Fernández Silva estava ligado ao violeiro italiano Alberto Olmi, estabelecido na rua Cavour, 48, de Siena. Ambos os dous aparecem na etiqueta da guitarra restaurada por Bortolozzo, pelo que é possível pensar que entre eles havia algum tipo de colaboração, no mínimo, para a venda de instrumentos. De modo que pode ter sido a cidade de Siena a conexão entre Silva e a Hungria.
De Fernández Silva suspeitamos que tenha emigrado à Argentina, como tantos outros músicos ourensanos, e talvez seja o José Fernández que documentamos a trabalhar em Buenos Aires com outro galego violeiro, o baixo-minhoto Francisco Núñez Rodríguez.
Francisco Núñez Rodríguez
Nascido em Tebra, em 1841, e falecido em Buenos Aires, em 1919, Francisco Núñez Rodríguez é um exemplo de emigração exitosa, o que poderia chamar-se de “sonho americano” à galega. De criança emigra com o pai e a mãe a Buenos Aires, onde aprende o oficio de violeiro. Em 1870 abre uma oficina própria e no final do século a Casa Núñez é já uma fábrica de guitarras em série, acompanhada duma loja para a venda de instrumentos, acessórios e partituras, uma casa editorial que publica música para guitarra e um centro social para guitarristas onde se realizam recitais públicos.
A Casa Núñez, hoje ainda aberta e conhecida por Antigua Casa Núñez, foi o centro guitarrístico de Buenos Aires por onde passaram personalidades da guitarra como Gaspar e Julio Sagreras, Juan Alais, Domingo Prat, de quem foram editadas várias obras para guitarra junto com as de María Luisa Anido, Antonio Jiménez Manjón ou Carlos García Tolsa. E, em décadas posteriores, o próprio Atahualpa Yupanqui.
A oficina, loja e editora de Núñez precisava de atendimento e o baixo-minhoto deu emprego a membros da família, vizinhos e amigos que acharam na Casa Núñez uma saída laboral especializada. Alguns deles foram Daniel Lago Núñez (n. 1890), sobrinho; Pablo López, que ajudou desde o início do negócio; Manuel Domínguez Cambra (1873-1929), de Ponte Areias; e Celestino Méndez Cancio (n. 1883), de Sabariz (Astúrias). Todos, dum ou doutro modo, continuaram no ofício da violaria em Buenos Aires.
Matias Valenzano
Membro duma família de afamados violeiros italianos, Matias foi um dos violeiros Valenzano que estabeleceram vínculos com a Galiza. O primeiro Valenzano documentado é Giovanni Maria Valenzano (1750-1830), conhecido pelos seus violinos mas também construtor de guitarras, documentado na Itália, França e Espanha. O pai do guitarrista catalão, emigrado à Argentina, Domingo Prat tinha uma guitarra de G. M. Valenzano construída em 1809. O Joannes Valetianus que recolhe Vannes em Madrid, em 1799, é suspeito de ser o mesmo Giovanni Maria Valenzano que registam Romanillos e Harris.
Vannes também recolhe um Antonio Valenzano a trabalhar em Compostela. No caso de Matias, a sua filha Juana Valenzano casou em 1865 com o conhecido compositor, regente e autor da famosa Alvorada e do atual Hino galego, Pascoal Veiga Iglesias. Do matrimónio nasceram Augusto Veiga Valenzano, violinista, diretor duma escola de música em Betanços e regente de orquestras de cordofones, e Julio Veiga Valenzano, concertino da orquestra do Circo de Artesãos da Corunha. Também o sobrinho de Pascoal Veiga, José Adolfo Veiga Paradis, foi compositor e regente de orquestra.
Matias Valenzano é situado por Vannes em Barcelona, Corunha e Madrid a partir de 1875. Foi fundador da secção de música do Circo de Artesãos na Corunha, em 1847, e está registado como músico da Capela na catedral de Mondonhedo onde se conserva um contrabaixo feito por ele (Gándara, 2013).
Francisco e Concepción González
Por último, nomear brevemente, à espera de ampliação noutro artigo, uma outra família ourensana dedicada à construção de guitarras e todo o tipo de cordofones dedilhados. Francisco González Estévez (Córgomo, 1820 – Madrid, 1879) é reconhecido na capital do Reino da Espanha como o mestre do primeiro violeiro Ramírez. Varela Silvari regista em 1874 o nome da sua oficina: Guitarrería Universal, de nome talvez inspirado pelo primeiro prémio que recebeu em 1867 na Exposição Universal de Paris. A sua filha aprendeu o ofício e herdou a oficina do pai. Atualmente conservam-se na Galiza várias guitarras construídas na oficina da filha, com a etiqueta Hijos de Francisco González.
Bibliografia
Catálogo Metódico de la Exposición pública de Galicia celebrada en Santiago en el presente año. (1858). Santiago de Compostela: Jacobo Souto e filho.
Gábry, G. (1969). Alte Musikinstrumente. Budapest: Corvina Verlag.
Gaceta de Galicia. (1889). Santiago de Compostela: 14 de janeiro, 3.
Gándara Eiroa, X. C. (2013). La primera orquesta sinfónica de Galicia. Mundoclásico.com: 17 de maio.
LotSearch.net. (2018). Guitarra Jose Fernandez Silva 1895.
Manzanero, F. Colección. Guitarra Francisco González, año de 1875, Madrid. Blog do luthier Félix Manzanero.
Pérez Costanti, P. (1925-1927). Notas viejas galicianas, 3 v. Vigo: Imprenta de los Sindicatos Católicos.
Pocci, V. (2009). Biblioteca della Chitarra e del Mandolino. Blog.
Prat, D. (1934). Diccionario biográfico, bibliográfico, histórico, crítico de guitarras, guitarristas, guitarreros... Buenos Aires: Romero y Fernández. Reedição: Prat, D. (1986). A biographical, bibliographical, historical, critical Dictionary of guitars, guitarists, guitar-makers... With an introduction by Matanya Ophee. Columbus: Editions Orphée.
Radnóti, K. (2006). Musica instrumentalis. Budapeste: Magyar Nemzeti Múseum.
Revista da Real Sociedad Económica de Amigos del País de Santiago. (1885). Santiago de Compostela: 30 de junho, 370-371.
Romanillos Vega, J. L. e Harris Winspear, M. (2002). The vihuela de mano and the spanish guitar. A dictionary of the makers of plucked and bowed musical instruments of Spain (1200-2002). Guadalajara: Sanguino.
Vannes, R. (2003). Dictionnaire Universel des Luthiers, (3ª ed.). Bélgica: Les Amis de la Musique.
Varela Silvari, J. M. (1874). Galería biográfica de músicos gallegos. Corunha: Vicente Abad.
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