Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaA virtuosa bandurrista Miss Zaida na Galiza (1884-1902) (2)
Isabel Rei Samartim
Continuamos o artigo anterior sobre a vida artística na Galiza da virtuosa bandurrista, Miss Zaida. Uma precursora da arte do espetáculo, dedicada à interpretação musical num tempo em que as mulheres nem votavam, nem deviam destacar pelos seus talentos, a pesar delas agirem com profissionalidade e virtuosismo (Hindson, 2013).
Acompanhantes de Miss Zaida (continuação)
Em Orjais (2015) tratam-se algumas das notícias de Miss Zaida, com especial atenção à colaboração na chegada do cinematógrafo na Galiza. O artigo oferece uma listagem do repertório que figura nos programas conhecidos e os músicos que a acompanharam, guitarristas e pianistas. Além dos já mencionados estão o pianista Eugenio Arredondo, o guitarrista Antonio Sánchez Magdalena, o pianista lucense Ramón Ulloa Blanco, formado na Escola de Surdo-Mudos e Cegos de Manuel López Navalón (Compostela), o também pianista Antonio Taboada Nieto, e o guitarrista J. Asensio. Como vemos, com Miss Zaida sempre atuou algum tipo de artista masculino, e não sabemos que tenha sido acompanhada por alguma intérprete feminina, salvo a menina dançarina Carmen.
Ainda que Miss Zaida tinha acompanhantes fixos, como o antigo Mr. Jacobet, e depois J. Asensio, nos outros casos os acompanhantes eram ocasionais. Confraternizar com os músicos locais era na época, e mesmo é hoje, um modo habitual de receber e apresentar artistas de fora.
O encontro com João Montes
De agosto a dezembro de 1893, Miss Zaida toca por toda a Galiza com diversos acompanhantes à guitarra e ao piano. Um deles foi o mestre Montes. Primeiro foi programado um recital para o dia 10 ou 11 de novembro desse ano, no Casino lucense. Finalmente por inconvenientes de última hora o recital ficou aprazado para o 14 do mesmo mês. Como seria a reputação e desempenho de Miss Zaida para que na crónica desse recital o jornalista de El Regional dissesse de Montes, o grande mestre da música galega e excelso pianista do Círculo das Artes:
La famosa concertista Miss Zaida demostró una vez más, haciendo verdaderos prodigios de ejecución, la justa fama que tiene conquistada en el manejo del instrumento tan difícil de dominar como la bandurria.
El público premió su escogida labor con nutridas salvas de aplausos, y haciéndole repetir alguno de los números musicales del programa.
El maestro Montes, acompañando a Miss Zaida en el piano, estuvo á la altura de su reputación.
Em dezembro, Miss Zaida tocaria sucessivamente no Café Español de Lugo acompanhada ao piano por Ramón Ulloa Blanco. Como se o nome do café determinasse a procedência dos artistas que o frequentavam, todos os Café Español, quer o de Lugo, o da Ponte Vedra, ou o de Compostela, convidavam Miss Zaida para amenizar o local com a sua arte.
Repertório para bandurra e guitarra (ou piano)
O repertório que Miss Zaida preparava para as suas atuações estava nutrido de muita música europeia. São habituais dos seus programas os arranjos de conhecidas aberturas e árias de óperas como Guglielmo Tell de G. Rossini, Dichter und Bauer de F. v. Suppé, Norma de V. Bellini, La Favorite de G. Donizetti, La Traviata e Il Trovatore de G. Verdi, Cavalleria rusticana de P. Mascagni. As obras de concerto Marche Indienne de A. Sellenick, a Marcha turca ou andamento Alla turca, terceiro da Sonata para piano n.º 11 de W. A. Mozart, o Minueto do Quinteto Op. 11, n.º 5 de L. Boccherini, Ständchen D. 597 de F. Schubert, Stephanie - Gavotte de A. Czibulka, Pavane favorite Op. 100 de F. Brisson, La serenata - Leggenda valacca de G. Braga, Dolores - Waltz de E. Waldteufel, a Sérénade de Ch. Gounod e o Ave Maria de Bach/Gounod.
Miss Zaida também interpretava obras de carácter espanhol e andaluz tais como partes das zarzuelas El anillo de hierro de P. M. Marqués, La Dolores de T. Bretón, El dúo de La Africana de M. Fernández Caballero, Las hijas de Zebedeo e Serenata morisca de R. Chapí. E o Popurri de aires andaluces de E. Lucena Vallejo, Adiós a la Alhambra de J. Monasterio, Las auras del Tajo ou Las auras de Madrid e Celestial de N. Toledo, Aires españoles de D. Zabalza, Mercedes, mazurca de salão, de M. Más Bargalló (?), Aires de España do bandurrista cego C. Terraza Vesga, entre outras.
A única obra galega do seu repertório é a Alvorada de Veiga, nomeada no anterior artigo sobre a família Veiga-Valenzano, que tocou, isso sim, em inúmeras ocasiões. Miss Zaida levou a peça fora da Galiza, segundo dá conta o jornal La Rioja (1896), que informa do recital no Círculo La Fraternidad de Logronho, onde está programada a Alvorada de Pascoal Veiga, precedida pela Marcha turca de Mozart. Além da música antedita, Miss Zaida deu-se à composição e interpretação duma obra sua intitulada Ella, tanda de valses, com que costumava abrir ou fechar os programas.
Miss Zaida e o cinematógrafo Lumière
Os representantes de Lumière na Galiza eram os portugueses César Marques e o ator Alexandre Azevedo. Em Folgar e Letamendi (1997, p. 5) enuncia-se a hipótese de que estes representantes encontrassem Zaida e Asensio no Porto, dadas as informações da imprensa portuguesa que falava sobre "a Sr.ª Julia Zaida, que é bandurrista distinctissima". Miss Zaida e Asensio acompanhariam a primeira projeção do cinematógrafo na Ponte Vedra, Vigo e Tui nos meses de abril e maio de 1897, num dos momentos de máxima promoção e fama de Miss Zaida, que contribuía assim para o desenvolvimento do cinema galego (El Diario de Pontevedra; La Integridad). Os anúncios e resenhas jornalísticas deixam claro que Miss Zaida atuava como em qualquer representação de teatro, nos intervalos de descanso entre atos, pois nos primeiros passos do cinema a projeção não incluía música em simultâneo com as imagens.
O Trío España
Após a colaboração com o cinematógrafo, no mês de junho Zaida e Asensio vão a Lugo onde são contratados para vários concertos no Café Español. É logo em setembro quando o duo realiza uma colaboração com o concertista Agustín Rebel Fernández que se denominou Trío España, ainda que pelo programa apresentado em Marim parece que não tocaram a trio (La Voz de Morrazo, 1897). Mais bem foi uma união de músicos espanhóis a distribuírem os tempos do recital entre o duo e o solista. Entre @s três tocam no marinense Teatro Arrufana um programa de 12 números dividido em três partes, em que o duo toca na primeira e terceira parte, e o solista Rebel, na segunda.
No programa do Teatro Arrufana aparece claramente uma vontade de fazer brilhar as interpretações de virtuos@s. A notícia apresenta @s músic@s como “célebre concertista de bandurria Miss Zaida” e “reputado concertista de guitarra A. Rebel”, enquanto J. Asensio figura como segundo guitarrista. O repertório de Zaida e Asensio é o já conhecido e aqui tratado, e o programa de Rebel está formado integralmente por obras da sua autoria: um prelúdio, El arpa eólica, Miscelanea española e valsas de salão. Mais para a frente um novo artigo tratará do concertista e autor de vários métodos para guitarra publicados em Lisboa, Agustín ou Agostinho Rebel Fernández.
Em 1902 com Carmen
Nesse ano, último na Galiza segundo deixa ver a hemeroteca, Miss Zaida atua acompanhada de Asensio e de Carmen, uma menina de nove anos de idade que dança, recita e monologa, a única parceira feminina documentada. A apresentação de crianças artistas costuma ser feita com a mãe e o pai e, nalguns casos, ainda mais membros da família. A resenha do concerto realizado em 13 de abril dizia (El Diario de Pontevedra, 1902):
Anoche tuvo lugar el primer concierto por los notables concertistas de bandurria y guitarra Sra. Zaida y Sr. Asensio.
El salón estaba totalmente lleno de público que los escuchó con gusto y aplaudió en todos sus números.
Lo que llamó extraordinariamente la atención fue Carmencita, preciosa niña de 9 años recitando monólogos y ejecutando preciosos bailes andaluces con el talento y la agilidad de consumada artista.
El concierto de anoche fué un éxito que creemos se prolongará cuantos días estén entre nosotros.
Todas las noches a las nueve.
Se a menina Carmen tinha nove anos em 1902, poderia ter nascido em 1894. Talvez isso explique a estadia permanente na Galiza de Miss Zaida, com recitais incluídos, entre o mês de agosto de 1893 e o de fevereiro de 1894, segundo diz a hemeroteca. Depois Julia Díaz descansa e não retomará os recitais até 1895, em Logronho, onde permanece até 1896. Em agosto desse ano é quando interpreta a Alvorada de Veiga em terras logronhesas, e só regressa à Galiza em abril de 1897, onde permanece até ao mês de setembro.
Teria sido concebida a menina Carmen durante as giras de Miss Zaida na Galiza? Chegaria ela a nascer entre nós, como aconteceu também a Santiago (sic) Nebot, outro virtuoso da bandurra e membro da afamada família Nebot? Não sabemos, mas pode suspeitar-se que Carmen seja filha de Julia Díaz e de J. Asensio, guitarrista de quem desconhecemos quase tudo. Sobre isto, Estefanía Fernández (1997) recolhe uns irmãos Asensio, acrobatas, que levam uma companhia circense e teatral chamada Circo Agustini. O rótulo remete também para a afamada funâmbula conhecida por Mademoiselle Agustini, a navarra Remigia Echarren Aranguren (1853-1921). Infelizmente, não temos achado estudos a relacionar Mademoiselle Agustini com o circo dos Asensio ou Miss Zaida, pelo que estas associações são meras hipóteses.
Os últimos recitais na Galiza de Miss Zaida decorrem entre fevereiro e junho de 1902. Já foi mencionado o debute do trio de Zaida, Asensio e Carmen na série de concertos que darão no Café Español da Ponte Vedra. Da crónica de La Correspondencia Gallega (1902a): “Son dignos de oirse y ver especialmente la Carmencita, pues á pesar de sus pocos años, trabaja como una consumada artista”. Em 3 de junho estarão brevemente em Ourense no Café El Regional (La Correspondencia Gallega, 1902b) e uns dias mais tarde, de novo darão uma série de concertos no Café Español de Lugo (El Regional, 1902).
O trabalho e tese sobre a guitarra na Galiza, apresentado em setembro de 2020, recuperou numerosas informações sobre @s guitarristas galeg@s. Mas também tratou guitarristas de fora da Galiza que tocaram na nossa terra, como Agustín Rebel, Reinaldo A. Varela, José Fola, a família Nebot, ou Julia Óscar. A consciência da construção do gênero (Butler, 2004) e a história compensatória das mulheres (Marcia Citron, 1993) animaram-nos nesta ocasião a contribuir para o estudo da logronhesa Julia Díaz, Miss Zaida, cujas informações esperamos sejam de interesse além das nossas fronteiras e sirvam para ampliar os estudos das mulheres músicas.
Bibliografia
Butler, J. (2004). Undoing gender. Nova Iorque/Londres: Routledge
Citron, M. (1993). Gender and the Musical Canon. Cambridge: Cambridge University Press.
El Diario de Pontevedra (1897b). Ponte Vedra: 26 de abril, p. 3.
El Diario de Pontevedra (1902). Café Español. Ponte Vedra: 14 de abril, p. 2.
El Regional (1902). La ciudad. Lugo: 9 de junho, p. 1.
Fernández García, E. (1997). León y su actividad escénica em la segunda mitad del siglo XIX. Tese de doutoramento. Madrid: UNED.
Folgar de la Calle, J. M. e Letamendi Gárate, J. (1997). Imaxes para un centenario: O cine en Galicia. Corunha: Centro Galego de Artes da Imaxe.
Hindson, C. (2013). Female Performance Practice on the Fin-de-Siecle Popular Stage of London and Paris: Experiment and Advertisement. Manchester: Manchester University Press.
La Correspondencia Gallega (1902a). En el Café Español. Ponte Vedra: 14 de abril, p. 3.
La Correspondencia Gallega (1902b). Orense. Ponte Vedra: 3 de junho, p. 2.
El Diario de Pontevedra (1897a). En el Teatro. Ponte Vedra: 23 de abril, p. 3.
La Integridad (1894). Tui: 15 de maio, p. 3.
La Rioja (1896). Logronho: 2 de agosto, p. 3.
La Voz de Morrazo (Ilustrado) (1897). Marim: 14 de setembro, p. 8.
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