Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

Parga, um guitarrista galego de máximo nível europeu (1)

Isabel Rei Samartim
jueves, 12 de agosto de 2021
Juan Parga Bahamonde © Arquivo do Museo de Ponte Vedra Juan Parga Bahamonde © Arquivo do Museo de Ponte Vedra
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Dentro da plêiade de guitarristas nascidos e criados na Galiza, um nome destaca pelo seu virtuosismo, a qualidade musical das suas composições e o carinho com que foi recebido na sua terra. Juan Parga Bahamonde (Ferrol, 1843 – Málaga, 1899) criou-se na sua cidade natal onde estudou para militar e integrou a Brigada Topográfica do exército espanhol. Era, pois, Parga um militar do Ferrol, igual que outros galegos como Naya, Canals ou Morelli, que para a sua formação educacional realizavam estudos de música em que se revelavam como excelentes guitarristas.

Um possível menino prodígio

Parga deveu revelar-se como um talento musical desde criança. Os estudos militares estiveram acompanhados do seu desenvolvimento como guitarrista, dentro do ambiente guitarrístico do Ferrol, que sabemos intenso tanto na primeira quanto na segunda parte do século XIX. Os imprescindíveis dados de Prat (1934) informam de que Parga, dous anos antes da sua morte, escreveu ao amigo e guitarrista Juan Valler. Nessa carta Parga afirma ter informado Valler da sua primeira época [entendemos que como guitarrista], informação que Prat não disponibiliza. Assim que a falta de saber mais, vemo-nos obrigadas a conjeturar possíveis linhas vitais de Parga para os seus primeiros trinta anos de vida: É possível que ao se licenciar como militar, uma vez demonstradas amplas capacidades musicais, Parga ampliasse os estudos no Conservatório de Madrid, onde ele mesmo diz que estudou oito anos de piano e também harmonia com o mestre e compositor navarro Emilio Arrieta (1821-1894).

Íncipit da obra «Mi Lira» (Minha lira) Op. 8 - Fundo Pintos Fonseca. © by Arquivo do Museu da Ponte Vedra.Íncipit da obra «Mi Lira» (Minha lira) Op. 8 - Fundo Pintos Fonseca. © by Arquivo do Museu da Ponte Vedra.

É possível que fosse depois dos estudos em Madrid, já com o título de professor de música, que Parga viaja à Havana, cidade onde é localizado pelo pesquisador Almuinha (2008) como professor de guitarra. Nessa época também Vicente Franco, outro ferrolano guitarrista teria emigrado à Havana. No repertório de Parga percebem-se traços musicais inequívocos da sua passagem pela ilha caribenha, como a série de tangos Del Ferrol á la Habana, Dos guajiras para guitarra e Guajira de mediana dificultad. Não deveu estar muito tempo Parga na Havana, pois antes de 1876, quando Prat o situa em Sevilha, já tinha feito giras de concertos por França, Itália, Portugal e toda a Espanha. Para descansar de tanta gira, com 33 anos de idade, Parga tinha intenção de estabelecer-se em Sevilha, onde estava parte da Corte espanhola, mas finalmente achou o amor em Málaga.

Parga, professor Real

Íncipit da obra «Recuerdos de Sevilla» op 30 - Fundo Pintos Fonseca. © by Arquivo do Museu da Ponte Vedra.Íncipit da obra «Recuerdos de Sevilla» op 30 - Fundo Pintos Fonseca. © by Arquivo do Museu da Ponte Vedra.

Prat informa de que Parga foi professor das filhas da rainha Isabel II como Músico de Câmara em Sevilha. Entende-se que daria as aulas na residência Real que era o Alcázar, e que as filhas poderiam ser María del Pilar, María de la Paz e María Eulalia, que tinham em 1876 respetivamente 15, 14 e 12 anos de idade. Prat afirma que as filhas eram “Isabel, Pilar y Paz”. Porém, segundo os nossos cálculos, María Isabel teria em 1876 uns 25 anos de idade e já era viúva, pelo que nos parece mais possível que fosse a irmã pequena, Eulalia, a receptora das aulas magistrais do ferrolano. E, com efeito, a ex rainha Isabel II chegou com essas três filhas em outubro de 1876 ao Alcázar de Sevilha, para uma visita que se prolongou até ao mês de novembro de 1877 (Fernández, 2007). Parga chega a ter contato com a família Real através de Juan Valler. Este guitarrista sevilhano tinha sido o primeiro em atuar para a família Real, através das gestões realizadas pelo Secretário, Mordomo mor e Chefe Superior da Casa Real, o também sevilhano Ramiro de la Puente González-Nandín. Do mesmo modo atuariam também no Alcázar os guitarristas Julián Arcas e José Martínez Toboso (Romanillos, 1997).

Informa Prat que Parga está em 1880 em Toledo, onde prepara ao menino prodígio José Rojo e toca com ele em concerto, e que em 1883 casa-se em Málaga com Antonia Juárez Montosa. Pela carta que Parga dirige a José Rojo, ou “el niño Pepito”, sabemos que se conheceram em Madrid anos antes, possivelmente antes de 1876, e que por aquele tempo o ferrolano abandonou o cargo de Celador da Brigada Topográfica “por la lucha de mis aficiones artísticas”. Daí foi a Toledo e passou a ser professor do talentoso menino, que se inclinava mais pela música flamenca. O ferrolano relata na carta a relação de amizade com os pais de Rojo, e as giras por Plasencia, Cáceres, Trujillo, que ao parecer não davam dinheiro nem para pagar o alojamento em cada cidade (Prat, 1934, p. 236):

A pesar de todo, yo tenía la idea de la amplitud, la mundología y toda aquella diplomacia de la vida nómade, que constituye el primer tercio de mi vida; pero no me hacía feliz, porque tenía aspiraciones justificadas, pues había dejado una carrera [militar], que, si bien humilde, era segura y era menester aprovechar el tiempo y eso nos separó.

A carta é de 1898 e nela afirma estar indo a uns banhos em Tolox (Málaga) por causa dum catarro que sofre há dous anos. No ano a seguir, em 1899, Parga morreria de tuberculose com somente 56 anos de idade, felizmente casado e sem filhos. Conjetura Prat, com bom critério, que Parga 

escribió esta carta con la sensación que sienten los que padecen la enfermedad que lo llevó a la tumba. Su exaltación al recuerdo de antaño, era el clarín que anunciaba el final de su vida; no habla de labor futura; nos cuenta lo que ha hecho; y al escribir así a su ex discípulo Rojo, le daba su adiós.

A atividade na Andaluzia

Íncipit da obra «Concierto clásico» op 28 - Fundo Pintos Fonseca. © by Arquivo do Museu da Ponte Vedra.Íncipit da obra «Concierto clásico» op 28 - Fundo Pintos Fonseca. © by Arquivo do Museu da Ponte Vedra.

Estabelecido em Málaga desde 1881 ou 1882, Parga funda em 1884 a Estudantina do Círculo Mercantil, chamada Nosotros e composta por dezanove músicos. Um dos componentes, Eduardo Mistrot, mostra a Prat uma fotografia da dita estudantina, ou orquestra de guitarras, onde se apreciam oito guitarristas, cinco bandurristas, três flautistas, dous violinistas e um violoncelista. Os guitarristas eram Francisco Ruzi, Francisco Culebra, José González, Manuel Márquez, Juan Hinestrosa, Ramón Sáenz, Antonio Mistrot e Joaquín Mistrot. Os bandurristas eram Policarpo Maqueda, Juan Delgado, Amador Espejo, Eduardo Villar e Eduardo Mistrot. Os flautistas, Manuel Fernández, Juan Laubere e Juan Jáuregui. Os violinistas, Francisco Buzo e Emilio Torres, e o violoncelista, Joaquín Bueno. Observamos aqui os irmãos Mistrot, Antonio, Joaquín e Eduardo. A estes dous últimos dedicou Parga a sua obra Del Ferrol á la Habana. Tangos fantásticos Op. 23, obra em que arranja uma contradança ferrolana. No jornal gaditano La Semana anuncia-se a gira que a orquestra Nosotros dará para recolher fundos com motivo das vítimas dos terramotos em Málaga e Granada acontecidos no Natal de 1884.

Na mesma carta ao guitarrista e aluno José Rojo, Parga afirma que deu concertos em Paris, na Itália e que visitou de novo toda a Espanha. É muito possível que essa “toda a Espanha” se referisse à sua memorável gira pela Galiza em 1889, que o levou de novo a Paris. Esta excursão saudosa pela sua terra foi o detonante das composições galegas que, infelizmente, hoje estão perdidas e serão tratadas na segunda parte deste artigo. Por enquanto, continuemos a imaginar vida de Parga em Málaga até ao seu falecimento nessa cidade andaluza e analisemos a qualidade das composições que sim foram publicadas e hoje, por sorte, conhecemos.

As últimas giras artísticas

Os jornais galegos fazem-se eco das giras de Parga depois da visita à Galiza em 1889, que gerou imensa paixão pelo ferrolano. Por eles sabemos que em 1891 Parga tocou em Valencia, Barcelona, Donostia, Bilbo, Santander, Uviéu e Xixón, sem chegar a se internar na Galiza. Em 1893, a imprensa galega ainda albergava esperanças de voltar a receber Parga, mas a que seria sua última gira levou-o a outros lugares. O jornal madrileño La Correspondencia de España publica a saída de Parga para a cidade de Ronda, a Norte da província de Málaga, onde começa a série de concertos. Depois, sempre segundo a informação do jornal, visitará toda a Andaluzia, Gibraltar, Barcelona e Madrid. A informação é de 14 de setembro, pelo que é possível a gira durar até ao ano 1895. A partir daí, Parga começa a sentir a ameaça da tuberculose, e por isso imaginamos que esta seria a sua última excursão artística.

O ano de 1893 também é o da publicação das suas obras. Prat menciona a editora López e Griffo, mas graças aos fundos galegos sabemos doutra editora, López e Pino, que também publicou uma parte das obras. A relação de opus existente nas publicações contrasta com a falta dos títulos correspondentes a esses números, pelo que parece que as obras existiam, mas não foram publicadas, ou não foram publicadas por esse editor.

A obra publicada de Parga

Nas obras publicadas por López e Pino conservadas no Fundo Pintos Fonseca do Museu da Ponte Vedra, e também as publicadas por López e Griffo que são de domínio público, aparecem relacionados 30 números de opus, mas unicamente aparecem os títulos das obras publicadas:

[...]

Op. 8: Ramillete de Salon-Mi Lira-Mazurca

Op. 9: Granadinas. Conocidas por Murcianas y Fandango

Op. 10: Capricho sobre las Murcianas – Rapsodia 1ª de concierto

Op. 11: Sevillanas – verdadero estilo andaluz tomado del Pueblo

[...]

Op. 23: Del Ferrol á la Habana – Colección de Tangos fantásticos

Op. 24: Recuerdos de Cádiz – Gran nocturno elegíaco

Op. 25: Recuerdos de Málaga – Rapsodia 2ª de concierto

Op. 26: Horizontes andaluces – Gran fantasia

Op. 28: Concierto clásico – con mecanismo de escuela

Op. 29: Alhambra – Gran fantasia descriptiva de concierto

Op. 30: Recuerdos de Sevilla – Fantasía característica

Além destas obras, o guitarrista flamenco Alfredo Mesa gravou em 2016 mais cinco obras de Parga de sabor andaluz e cigano, que junto às onze anteriores fariam um total de dezesseis obras, faltando ainda mais catorze para completar os 30 números de opus:

1.     Seguidillas gitanas

2.     Guajiras

3.     Polo gitano

4.     Panaderos

5.     Petenera

Prat dedica uma boa parte da entrada de Parga no seu dicionário a comentar o elevado nível técnico e musical que demonstram as obras publicadas pelo virtuoso ferrolano. E indica que os efeitos sonoros propostos por Parga: 

son cualidades del instrumento que, puestas así a la práctica, oportunamente, por todo estudiante, le rendirán con creces el tiempo que empleará, recordando a la vez que esta gama de efectos peculiares, adoptados algunos de ellos por Tárrega, Torroba y Turina en sus obras, deberían de conocerlos compositores de envergadura para ofrecer a la guitarra hermosas páginas hasta hoy insospechadas.

Todas as obras que se conhecem de Parga caracterizam-se pelo seu virtuosismo, não unicamente no desempenho técnico do instrumento, mas também nos pormenorizados e numerosos matizes, expressões e imagens visuais para transportar ao intérprete o universo sonoro do autor: "con espresion", "flébil", "con anima", "lamentabile", "fagot" (imitar o som do fagote), "lusingando" (lisonjeiro, persuasivo), "con abandono", "incalzando" (pressionando, exortando), "affettuoso". As suas obras estão cheias de indicações de tempo, de carácter, de articulação, de volume e amparadas por explicações técnicas. Um conjunto de pormenores próprio dos grandes compositores-intérpretes que não deixam fugir uma nota sem uma boa, definida e interessante ideia musical.

Na segunda parte deste artigo trataremos o recebimento de Parga na Galiza, o seu repertório galego, as impressões dos jornalistas, os poemas dedicados a ele e à sua música, e a enorme pegada que deixou na sua terra, num momento histórico em que a propaganda da “guitarra espanhola” começa a provocar a dúvida de se a guitarra é, ou não é, um instrumento galego.

Bibliografia

Almuinha, R. P. (2008). A la Habana quiero ir: los gallegos en la música de Cuba. Santiago de Compostela: Sotelo Blanco.
El Eco de Galicia (1891). Lugo: 23 de fevereiro, p. 2.
Fernández Albéndiz, Mª C. (2007). Sevilla y la Monarquía. Las visitas reales en el siglo XIX. Sevilha: Universidade de Sevilha.
La Correspondencia de España (1893). Madrid: 14 de setembro, p. 1.
La Semana (San Fernando) (1885). Retazos. Cádiz: 16 de fevereiro, p. 3.
http://hemerotecadigital.bne.es
Mesa, A. (2016). Guitarra preflamenca. CD. Selo: Córdoba Sur Estudios.
Prat, D. (1934). Diccionario biográfico, bibliográfico, histórico, crítico de guitarras, guitarristas, guitarreros... Buenos Aires: Romero y Fernández. Reedição: Prat, D. (1986). A biographical, bibliographical, historical, critical Dictionary of guitars, guitarists, guitar-makers... With an introduction by Matanya Ophee. Columbus: Editions Orphée.
Rei-Samartim, I. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela.
Romanillos, J. L. e Harris, M. (1997). Antonio de Torres. Guitar Maker – His Life and Work. EUA: The Bold Strummer, Ltd.

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