Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaAs guitarras de Rosália Castro
Isabel Rei Samartim

Ignotus
Ilustrando um belo encontro no ano de 1853, conta ao namorado Manuel uma anedota musical que lhe acontecera por aqueles tempos em Compostela. Arrastava-se a crise da fome havia já vários anos quando uma criança pobre, vinda das montanhas, enchia com uma música muito especial as ruas compostelanas. Rosália pediu à criança para subir à casa e cantar para os convidados. Depois de vestido e comido, o menino interpretou a sua música. Todos ficaram maravilhados daquela beleza nova, lírica e agreste.
Então Rosália pegou na sua guitarra inglesa e tocou para o menino a barcarola da ópera A Estrangeira de Bellini. O menino chorou pela beleza que saía dos dedos de Rosália e ela pensou que estava diante de um potencial talento para a música. Depois daquele dia, o menino foi convidado a comer diariamente na casa, onde a sua professora aproveitaria para lhe dar instrução básica e musical. Um dia o neno anunciou que abandonava as aulas por ter de ir trabalhar com a família. A conclusão do conto era: Como pode avançar Galiza se a quantidade de talento musical das gentes galegas não se desenvolve por causa das condições sociais?
Esta anedota é um resumo do relato intitulado Ignotus, que Murguia incluiu na sua antologia de autores galeguistas Los Precursores, publicada um ano após a morte de Rosália, livro que abre o desenvolvimento do galeguismo no último terço do s. XIX. O texto dedicado a Rosália Castro, pela intimidade do conteúdo e o estilo da escrita pode afirmar-se que foi redigido por um Murguia comido pela saudade, a relembrar os primeiros momentos da sua relação com a talentosa artista, mais tarde a sua esposa. Neste conto relata-se o modo em que a necessidade de melhorar as condições sociais da Galiza estava no impulso inicial e foi o grande objetivo das suas vidas dedicadas ao galeguismo.
Poemas e música
A sensibilidade musical rosaliana percebe-se também na sua obra literária. Dos múltiplos exemplos que poderiam apresentar-se escolhemos dous. O primeiro é a referência explícita ao “doce som da melancólica guitarra” no poema “Padrão, Padrão!” (Cantares Galegos, 2009). O segundo é o poema “A Bandolinata” (Folhas Novas), onde a música do grupo de bandolins devolve a esperança e a alegria à poeta. O próprio Eça de Queiroz parecia estar a descrever Rosália quando no relato O primo Basílio (1878) colocou na voz e no piano da Luísa a canção italiana A Mandolinata.
A cantar árias operísticas e acompanhar-se de guitarra e harmónio, assim teriam sido muitos serões da família Murguia-Castro. Ainda que Manuel Murguia não tocava qualquer instrumento musical, a sua era uma família de músicos organistas. O avô Domingo Murguia Azconobieta (Irun, 1762-1844), casado com Maria Felipa Egaña em 1786 e organista em Tolosa, o tio-avô Joaquín Tadeo Murguia (Irun, 1759-1836), organista em Málaga, e o filho de Domingo, José Joaquín Tadeo Murguia Egaña (Irun, 1789-?), também organista em Málaga. Portanto, um avô, um tio-avô e um tio, todos família direta de Manuel Murguia, eram músicos organistas (Querejeta, 1913; Quiñones, 1987; Torre, 2003). Isto somado à afeição musical e talento de Rosália deu em que o filho Ovídio, o pintor, também fosse músico e tocasse vários instrumentos (Naya, 1974; Orjais, 2013). As primeiras notícias sobre a atividade artística e musical de Rosália chegam a partir do académico e amigo da família, Augusto González-Besada Mein (1916, p. 36), onde explicitamente indica que a ela:
Diéronle una educación muy superior a la que se acostumbraba a dar a las jóvenes de su tiempo; aun a las de noble estirpe y posición muy holgada, y ella le permitió, en edad muy temprana, conocer correctamente el francés, dibujar con soltura, tocar el piano y la guitarra y cantar con afinación. Es fama, que a los quince años tomó parte en una función teatral que para fines benéficos organizó la Sociedad Liceo de Santiago, y a los diez y siete desempeñó el papel de protagonista de la Rosmunda, de Gil y Zárate, arrebatando al público, que le arrojó flores y palomas.
Mais tarde aparece o trabalho de Bugallal (1951) sobre Ovídio Murguia, que oferece alguns dados importantes e complementários. Quando chega o matrimónio Murguia-Castro à Corunha, para viver na casa do n.º 13 da rua de Santo André forma-se uma tertúlia com diversos artistas e intelectuais corunheses, entre eles “un devoto de la pintura y de la música que habita en la casa colindante: don Manuel Boedo Yañez” (Bugallal, 1951, p. 9). Diz Bugallal a falar sobre Ovídio (p. 21):
Y es que Ovidio, antes que pintor, antes que artista, antes que poeta, es hijo de Rosalía. Desde niño apunta una especial disposición para el dibujo y la música, como las apuntó la madre en su juventud.
Com efeito, Rosália ensinou pintura e música aos seus filhos e filhas. Bugallal informa também da afeição guitarrística de Ovídio Murguia (p. 10):
Cada vez se aficiona más a esta pintura de tales que le permite disfrutar, al propio tiempo, de las amenidades de una tertulia en donde todos los circunstantes ponen a contribución sus aficiones artísticas; él mismo, interrumpiendo de improviso la pintura para rasguear la guitarra y entonar una canción.
Mais tarde viria o artigo de Filgueira (1986) a recolher a maior parte de dados e testemunhos sobre a atividade musical de Rosália, junto com uma análise do espírito musical nos seus textos. Nele mencionam-se os instrumentos que ela tocava: flauta, harpa, guitarra, bandurra, piano e harmónio. Salvo os de tecla (piano e harmónio) e de sopro (flauta), o resto (harpa, guitarra e bandurra) são instrumentos de corda dedilhada historicamente tocados por um mesmo instrumentista e próprios da sua época. A filha Alejandra em carta a Casto Sampedro datada em 1919 dizia que Rosália tocava a guitarra “inglesa” e a “espanhola”. Também Queipo (2007, p. 106) regista um professor de na Corunha, em 1835. A primeira era o cistre bem conhecido em Portugal e Galiza que no s. XVIII, pelo crescimento do comércio com Portugal, adotou o nome de guitarra inglesa. A segunda é a guitarra/viola de madeira e seis cordas, com caixa em forma de oito. E dizia Alejandra:
en casa siempre hubo guitarra española [sic], que los amigos nos prestaban para oír a mamá, que era una profesora como hoy no se encuentran (Filgueira, 1986, p. 34).
Mas foi o grande Borobó, Raimundo García Domínguez (Ponte Cessures, 1916 - Compostela, 2003), que reivindicou a galeguidade da guitarra através da vida de Rosália e dos seus filhos e filhas. Borobó relata que a Alborada rosaliana tinha sido aprendida nota por nota pelo seu vizinho gaiteiro e guitarrista, o senhor Joaquim, que a cantava e tocava na guitarra entanto ela transcrevia a letra procurando manter o fraseio e ritmo musical. Em Amado Carvalho (2012, p. 282) comentamos o padrão rítmico musical da letra dessa alvorada, escrita sobre a música do gaiteiro Clemente Eiras. E o próprio autor reconhece (Borobó, 1999, p. 42-45):
Pero había que sopesar el papel de la guitarra, papel claro está pautado, en la lírica gallega decimonónica: acaso semejante al de la cítara en manos de los trovadores y segreles de los cancioneros galaico-portugueses.
De esta forma, Rosalía de Castro de Murguía, por ejemplo más preclaro, como aún recuerda contar a su abuelo Xaquín el ahora nonogenario Pipote, compuso la letra de la Alborada, verso a verso, con sus palabras truncadas, sin escuchar directamente los sones de la gaita del repoludo gaiteiro ullanés, sino oyendo una vez y otra vez más la interpretación melodiosa de su música del amanecer, a través de las cuerdas de la guitarra que magistralmente tañía.
Também afirma Borobó, por boca da filha Gala Murguia, que o temperamento da mãe se manifestava através da guitarra, habilidade que o seu irmão Ovidio tinha adquirido: "un joven que rompía sus cuadros de impaciencia ante una imperfección y que tocaba la guitarra como su madre" (1999, p. 43). E lembra Borobó, neste alegato em favor da guitarra galega, de Curros e a sua Cântiga:
Al evocarme, a finales del verano, el nonogenario barbero Pipote (mientras me arreglaba generosamente el pelo en aquella casa de Lestrobe) tan dificultosa colaboración lírica de Rosalía y su abuelo, cavilé sobre la trascendencia que tuvo la guitarra en varios momentos estelares de la poesía gallega.
No solo porque la tocaba admirablemente Rosalía de Castro, perfeccionando su técnica con el señor Xaquín, el excelente músico popular padronés que le enseñó sus más melodiosos aires, sino también porque me vino a la mente el modo en que compuso Curros Enríquez su famosísima Cantiga y que el vate de Celanova relató en una carta a don Francisco Díaz Silveira; incluída en las notas a la edición de Aires da miña terra, dentro de las Obras Completas recopiladas por su hijo Abelardo y publicadas por los sucesores de Hernando.
Vemos assim, nesta colaboração guitarrística entre o senhor Joaquim, gaiteiro e guitarrista padronês, avô do barbeiro Pipote, e Rosália, que o mito da guitarra como instrumento alheio à Galiza se dissolve como pedra de gelo num dia soleado.
A guitarra inglesa de Rosália
O cistre, guitarra inglesa, ou english guitar, foi um dos cordofones dedilhados mais famosos durante o século XIX na Galiza e em Portugal. O instrumento já existe na cultura popular galega e portuguesa, mas a nova moda da versão inglesa entra com força nesta altura. Na literatura guitarrística em Portugal observa-se o crescente uso e número de publicações para guitarra inglesa já no s. XVIII, sintoma claro das relações comerciais e políticas entre Portugal e Inglaterra (Oliveira, 1966, p. 145-150). A guitarra portuguesa, variante da inglesa, cujo uso e número de publicações cresce intensamente durante o s. XIX, constrói-se a partir da moda da english guitar como símbolo nacional e representativo de Portugal.
A guitarra portuguesa é um cistre (ou cistro), que temos classificado como a terceira vertente dos cordofones dedilhados de braço, cuja característica principal é a caixa de três círculos básicos (Rei-Samartim, 2020, pp. 54-61). Em próximos artigos será abordada esta nova proposta de classificação organológica para os cordofones dedilhados. Sabemos que as palavras guitarra e cistre são derivadas do grego kithara. A troca de vocábulos de igual origem é perfeitamente possível na nossa língua, daí o uso de guitarra por cistre. O ponto que marca a diferença é o facto de elevar um cistre ao mesmo nível artístico que a tradicional e bem conhecida viola em Portugal. Os músicos portugueses trabalharam nesse objetivo durante o século XIX, construindo repertório, métodos, instrumentos, tanto no âmbito popular quanto no burguês, onde a guitarra portuguesa se tornou protagonista (Cabral, 1999, 133 e ss.).
Por último, as guitarras inglesas, portuguesas ou cistres também foram nomeadas pela imprensa galega do s. XIX como cítaras, ao noticiar os diferentes grupos e intérpretes destes instrumentos. Os cistres eram instrumentos bem conhecidos em Galiza e Portugal desde havia muitos séculos. Aqui os cistres aparecem representados desde o século XIII ao XVIII como em São Francisco de Betanços (s. XIV), na portada de São Jerome, em Compostela (s. XVI) em São Salvador de Cela Nova e na catedral de Tui (s. XVIII). A influência inglesa e portuguesa viria a reafirmar e elitizar o uso que já se fazia destes instrumentos populares com caixa em forma de pêra ou lágrima, de que chegaram a fazer-se híbridos próprios da época.
Bibliografia
Amado Carvalho, L. G. (2012). Proel e O Galo e poesia e prosa galega completa. Barcelona: Edições da Galiza.
Borobó (1999). A cantora do Sar. Da man de Rosalía e co seu patronato. Padrão: Fundación Rosalía de Castro.
Bugallal Marchesi, J. L. (1951). El sentimiento lírico materno en la pintura de Ovidio Murguia. Corunha: Real Academia Galega.
Cabral, P. C. (1999). A guitarra portuguesa, Um século de fado (Col.). Espanha: Ediclube.
Castro, R. (2009). Cantares Galegos. Barcelona: Edições da Galiza. 1ª edição de 1863 adaptada com acréscimos da 2ª e 3ª edição.
Castro, R. (2012). Folhas novas. Barcelona: Edições da Galiza. 1ª edição de 1880.
Filgueira Valverde, X. (1986). Rosalía de Castro e a música. Atas do Congresso Internacional de estudos sobre Rosália Castro e o seu tempo. Santiago: 15-20 de julho de 1985.
González-Besada Mein, A. (1916). Rosalía Castro. Notas biográficas. Madrid: Biblioteca Hispania.
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Murguía, M. M. (1886). Los Precursores. Corunha: Latorre e Martinez.
Naya Pérez, J. (1974). El final de una estirpe: Rosalía de Castro y Manuel Murguía. Boletín da Real Academia Galega, 356, pp. 24-42.
Oliveira, E. V. d. (1966). Instrumentos musicais populares portugueses. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Orjais, J. L. d. P. (2013). Uma fotobiografia de Ovidio Murguia ao piano. Blog Ilha de Orjais: 21 de maio.
Queipo Gutiérrez, C. (2007). La ópera italiana y la música para guitarra decimonónica de un fondo desconocido coruñés. Em M.-R. García (Coord. e ed.). El futuro de las Humanidades (pp. 103-110). Betanços: Imprenta Lugami.
Queiroz, E. d. (1878). O primo Basílio. Porto: Chardron.
Querejeta, I. (1913). Los Murguia. Euskalerriaren Alde. Revista de cultura vasca. Donostia: 15 de agosto, pp. 639-641.
Quiñones, M. A. M. (1987). Joaquín Tadeo de Murguía (1759-1836). Organista de la catedral de Málaga. Málaga: Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Málaga.
Rei-Samartim, I. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela.
Torre, M. J. d. l. (2003). La música en Málaga durante la Era Napoleónica (1808-1814). Málaga: Servicio de Publicaciones e Intercambio Científico de la Universidad de Málaga.
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