Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaAs orquestras de plectro (2)
Isabel Rei Samartim
No artigo anterior tratamos as orquestras de plectro em Compostela. Hoje veremos as da Corunha que, se bem são numerosas, estão também relacionadas com as do Ferrol e Betanços, conformando o denominado Triângulo Brigantino, Betanços-Ferrol-Corunha, zona costeira galega formada por um conjunto de comarcas onde a atividade guitarrística foi especialmente intensa entre os séculos XIX e XX.
Registam-se na hemeroteca galega orquestras de plectro na Corunha desde 1888, como a do grupo que recebeu o orfeão El Eco à sua chegada depois de vencer no certame de Barcelona (Crónica de Pontevedra, 1888; Gómez e Cancela, 2017, p. 56). Os agrupamentos corunheses mais destacados foram o do Sporting Club (1890), Liceo Brigantino (1892), Circo de Artesanos (1895), Blanco y Negro (1986) e o do Círculo Católico (1898). Os regentes foram José Castro Chané, Mauricio Farto, Pío Arias, Julio Cristóbal e Luis Mariño.
O fundo musical da Sociedade Coral Polifónica El Eco conserva uma Balada para voz e guitarra apresentada ao Certame de Composição celebrado em 1890 na Corunha. A peça está registada pelo secretário da sociedade, Francisco Tettamancy, sem nome de autor, com o número 33 e data de 17 de julho desse ano. Dentro das bases do concurso havia um apartado com prémio ao autor da melhor balada escrita para voz de contralto ou barítono com acompanhamento de violino, piano ou guitarra, sobre o poema de Salvador Golpe Adios a Galicia, também conhecida por As lixeiras anduriñas (Mosquera, 1997, p. 106).
O advogado betanceiro Salvador Golpe tinha sido convidado a compor um texto para ser musicado pelos aspirantes, assim, o poema foi criado a propósito para o certame. A notícia sai na imprensa em maio de 1890 (Eco de Galicia, 1890). Esse foi o certame em que Montes recebeu triplo prémio pela sua música, sendo um deles a sua versão deste poema para voz e piano, a Balada que lhe deu ao virtuoso Parga durante a sua estadia na Galiza:
As lixeiras anduriñas
pra Galicia vindo van.
Veñen ledas tra-los niños
dos amores doutro vran.
Deixan lonxe moitas praias
os recordos dun amor
e aquí atopan amor novo,
doces brisas, caro sol.
Quen puidera te-las alas
que elas teñen pra voar!
se así fora, non sentira
tanta pena por marchar.
Eu, com'elas, deixo a terra
das lembranzas da nenez;
deixo a patria e os amores
sin espranzas de volver.
Mais, Galicia, se un mal fado
separarme fai de ti,
leva o corpo, porque a ialma
toda enteira deixo aquí.
adios casa, soutos, ríos,
veigas d'ouro, craro sol;
Adiós berce dos amores;
hasta sempre voume, adiós.
O original da Balada anónima do arquivo do El Eco tem uma melodia bem construída e ligada ao texto de um modo notável. O acompanhamento de guitarra foi feito, sem dúvida, por alguém que conhecia bem o instrumento. O tempo andantino confere dinamismo a uma música que se enche de matizes enquanto avança o texto. Estou tentada de imaginar que a obra seria da autoria de José Castro González, Chané filho, que era formalmente o regente do orfeão El Eco desde fevereiro de 1890 (Gómez e Cancela, p. 60), ou de Augusto Veiga, que dirigiu o Orfeão Corunhês n.º 4 na mesma época. Mas devemos lembrar que na Galiza de 1890 havia tantos bons guitarristas que resultaria inútil, sem mais dados, apostar por algum deles.
No arquivo deste orfeão também se acham mais três peças escritas para orquestra de plectro com a formação: bandurras 1ª e 2ª, alaúdes e guitarras. Poucas parecem, para a atividade geral de grupos de plectro que se reflete na imprensa. Trata-se das obras seguintes:
1. Hino a Maria Pita, de Antonio Gundin Fandiño com letra de E. Rodríguez Iglesias.
2. Laios dun emigrante, de Antonio Gundin Fandiño com letra de Pastor Asensi.
3. Preludio. El anillo de hierro de M. Marqués.
Antonio Gundín Fandiño foi o regente da corunhesa orquestra de plectro da Sociedad Albéniz durante 35 anos, a orquestra galega de maior duração do século XX, fundada em 1928. E também do arranjo, datado em 1908, para orquestra de plectro da obra do sinfonista e violinista maiorquino Pedro Miguel Marqués (1843-1918).
A febre das orquestras de guitarras era total na Corunha. Algum destes agrupamentos tem sido qualificado de "monstro" por integrar dezenas de intérpretes com os instrumentos "guitarras, guitarrones, bandurrias, cítaras, bandolones, octavinos y bandolines" (El Lucense, 1891). Os guitarrões imaginamo-los semelhantes aos instrumentos de Cee. Os bandolões, como bandolins grandes, de tessitura grave; os octavinos e as cítaras, como explica Campo Castro no seu método de bandurra (ca. 1890), o mesmo autor que publicou a moinheira do fundo Pintos Fonseca; e os bandolins e bandurras são ainda hoje bem conhecidas. Estes instrumentos patenteiam a variedade de cordofones dedilhados que ainda havia na Galiza de fim do século.
A orquestra de plectro do Sporting Club (1890-), formada por guitarras e bandurras, estava dirigida por Luis Mariño em 1893 e 1894. O Sporting Club era uma sociedade formada em torno das atividades desportivas mas, como era habitual, entre os seus membros havia músicos. Faziam parte dela os quatro componentes do quarteto de bandolim, bandurra, guitarra e guitarrão, formado pelos irmãos Pio e Joaquim Arias Miranda, Iglesias e Moscoso. Os irmãos Arias Miranda registam-se tocando também em Compostela e no Ferrol, em diversas formações camerísticas. Entre as atividades que realizava esta orquestra estavam a organização das serenatas, os convites do Ferrol, completavam programa em recitais de solistas e nos do orfeão El Eco, recebiam autoridades, organizavam e protagonizavam concertos na própria sociedade e até um americano, que em 1893 exibia o seu fonógrafo na cidade e gravava o orfeão, anunciava registar também alguma peça da orquestra (Gaceta de Galicia, 1893d).
A orquestra de plectro do corunhês Liceo Brigantino é dirigida entre 1878 e 1879 por José Castro Chané (Gómez e Cancela, p. 141). Esta orquestra participa no Entrudo de 1892 dando uma serenata pelas ruas e tocando no evento humorístico-teatral preparado com um apropósito e dois joguetes cómicos, que teria lugar no Circo de Artesãos. As notícias sobre a orquestra do Círculo Católico corunhês são de 1898, as duas referem recitais realizados dentro da própria sociedade (La Correspondencia Gallega, 1898a, 1898b).
A orquestra de plectro da Reunión Recreativa e Instructiva de Artesanos fundou-se em 1895 com mais de trinta intérpretes e na forma de associação independente, com os cargos diretivos formados por sócios da Reunión Recreativa. Eram o presidente José Luís Pereira, que meses depois seria nomeado tesoureiro da associação, o secretário Angel Monteagudo e o arquiveiro F. Calvet (El Anunciador, 1895; Estrada, 1986, p. 159). As suas atividades principais durante o final do século foram a participação nos recebimentos do capitão Weyler (1897) e o dos reis da Espanha (1900).
A orquestra Blanco y Negro, fundada em 1896 e dirigida desde o começo pelo compositor Mauricio Farto, destaca pela sua intensa atividade. Um evento especial foi a participação no colossal recebimento de uma comitiva francesa em 1896, onde a orquestra de Farto tocou situada numa das bateias da ria da Corunha, atuando noutra bateia a Banda de Infantaria (El Correo Gallego, 1896). Esta orquestra também foi conhecida pelo relacionamento constante com a cidade do Ferrol, cidade onde atuará repetidas vezes (El Correo Gallego, 1900a). Nesse relacionamento, Farto recebe na Corunha a orquestra homóloga ferrolana Airiños d'a miña terra (El Correo Gallego, 1900b). Ambas as formações continuam a sua atividade nas primeiras décadas do s. XX. A respeito da orquestra ferrolana, muito afim ao movimento galeguista, acaba de sair um artigo centrado nas de Betanços e a sua relação com as do Ferrol e as da Corunha no recente número do Anuario Brigantino.
Além disto, as notícias sobre rusgas de Entrudo na Corunha são numerosas, destacamos as chamadas Los Catalanes (1896) e Los Gitanos (1900), que saíam rondar as ruas caracterizados dos personagens dos títulos. A composição da primeira era de 10 guitarras, 3 violinos, uma flauta e um clarinete, mais um coro de 26 pessoas.
Por último, dá-se uma coincidência curiosa no ano de 1897. Nesse ano Chané, já na Havana, era regente e compositor da Sociedade Musical Aires d'a miña terra (não confundir com a ferrolana Airiños d'a miña terra), que se tinha formado em 1886 por uma rama escindida do Centro Galego protagonizada pelo poeta Curros Enríquez. É esta a mesma sociedade cuja secção filarmónica fora dirigida pelo guitarrista valenciano Casimiro Tarantino, depois por um guitarrista galego, Constantino Pereira, e que tinha premiado uma obra do também guitarrista e compositor pontevedrês Señoráns. Em 1887 na Corunha fundava-se uma orquestra de plectro do mesmo nome, Aires d'a miña terra, dirigida pelo músico militar Ricardo Morales Sabugueiro (La Correspondencia Gallega, 1897).
No próximo artigo veremos mais sobre as orquestras de plectro em diferentes localidades galegas, cidades e vilas mais pequenas onde se desenvolveram estes agrupamentos, na completa consciência destes apontamentos serem nada mais do que primeiros passos para os estudos mais aprofundados deste movimento musical com aspeto de movimento social de massas.
Bibliografia
Baliñas, M. (2020). 1890-1893: Andrés Gaos entre Bruselas y La Habana. Mundoclásico, 24 de julho.
Campo Castro, J. (ca. 1890). Nuevo método en cifra para guitarra doble, octavilla, bandurria ó cítara de seis órdenes. Edição do autor.
Crónica de Pontevedra (1888). El Orfeón "El Eco". Ponte Vedra: 20 de dezembro, p 3
Eco de Galicia. Diario de la tarde (1890). Lugo: 12 de março, pp 2-3
El Anunciador (1895). Corunha: 26 de maio, p 2
El Correo Gallego (1896). Preparativos para recibir á los Franceses. Ferrol: 21 de junho, p 2
El Correo Gallego (1900a). Ferrol: 18 de junho, p 2
El Correo Gallego (1900b). Ferrol: 30 de julho, p 2
El Lucense (1891). Lugo: 24 de fevereiro, p 3
Estrada Catoyra, F. (1986). Contribución a la Historia de La Coruña. La Reunión Recreativa e Instructiva de Artesanos en sus ochenta y tres años de vida y actuación. Corunha: Reunión Recreativa e Instructiva de Artesanos. É reimpressão do livro publicado em 1930.
Gaceta de Galicia (1893). Santiago de Compostela: 22 de dezembro, p 2
Gómez, S. e Cancela, A. (2017). Chané. O nacemento da música popular galega. Compostela: aCentralFolque. Centro galego de música popular.
La Correspondencia Gallega (1897). Ponte Vedra: 13 de julho, p 2
La Correspondencia Gallega (1898a). En el "Círculo Católico". Ponte Vedra: 5 de janeiro, p 2
La Correspondencia Gallega (1898b). Ponte Vedra: 22 de novembro, p 2
Mosquera Lavado, B. (1997). La música popular en la Coruña. 1850-1936. Perilho: Vía Láctea Editorial.
Rei-Samartim, I. (2020). Guitarristas de Betanços: Breve história da guitarra brigantina. Anuario Brigantino, 43.
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