Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaO fundo guitarrístico de Pintos Fonseca (2). A música e as guitarras
Isabel Rei Samartim

No legado musical de Javier Pintos Fonseca acha-se, além de música para piano, violino, zarzuela, ópera, tratados de harmonia e métodos de solfejo, mais de 130 obras para guitarra, duas guitarras, violino e guitarra, e grupo de bandolins, impressas e manuscritas entre a metade do século XIX e as primeiras décadas do XX.
Destacam, entre outros grandes documentos, cinco obras de João Parga, todas editadas por López e Pino, a obra de Chané arranjada para orquestra de bandolins e guitarras por Santos Rodríguez Gómez, e a obra do bandolinista viguês José Mouriño Vilas, premiada na Itália em 1912.
Além destas, Pintos reuniu uma grande coleção de música operística e popular composta ou arranjada por guitarristas espanhóis. Alguns deles aparecem noutros fundos galegos como Tomás Damas, Francisco Cimadevilla e A. [Aquilino?] García.
Mas, no fundo de Pintos também há guitarristas menos vistos na Galiza, como Federico Cano, Antonio Cano Curriela, Antonio López Villanueva, T. Domingo Palacio, Teodoro Amatriain López, G. Casajús e um tal R. V.
As obras dos guitarristas mediterrânicos, de Múrcia à Catalunha, têm um lugar destacado nesta coleção que conserva nove obras de José Ferrer Esteve, sete de Julián Arcas e duas de Antonio Rubira, além das de José Brocá Codina, José Costa Hugas, J. S. [José Sirera], Juan Nogués Pon e David G. del Castillo. Também há obras dos italianos Mauro Giuliani, Enea Gardana, Francesco Castelli, A. Padiglione e Graziani-Walter.
Também está neste fundo uma obra para duas guitarras composta pela inglesa Augusta E. Herbey e publicada pela editora Ricordi em Londres, de título L'Absence.
Esta obra, mais a de Giuliani, também para duas guitarras, a obra para violino e guitarra de Teodoro Amatriain, as obras para conjunto de bandolins e guitarras de Mattiozzi, Pere Nebot e Mouriño, além dos duos de composição própria, todas fazem parte do repertório de Javier Pintos quando se reunia com amigos para realizar as veladas de música de câmara e a música para a orquestra.
A ligação com a Argentina
Em artigo anterior vimos ligações com a guitarra argentina desde a vila de Rianjo. Agora, na Pontevedra, Pintos também tinha amigos guitarristas na Argentina.
Registamos dois deles, José Portela Palacios e Evaristo Touriño, que lhe enviam obras para a sua coleção e tomada de conhecimento do que acontecia no âmbito guitarrístico por aquelas terras.
Assim, o fundo conserva seis obras de Juan Alais Moncada, três de Carlos García Tolsa e duas de Gaspar Sagreras, todos ligados ao círculo guitarrístico bonaerense do construtor e editor galego Francisco Rodríguez Núñez e seus herdeiros.
Curiosidades
Entre as curiosidades do fundo está um arranjo de La Marsellesa cuja partitura manuscrita em papel reforçado e tinta vermelha, com letras góticas e em imitação ao acabado de imprensa, assinada na Ponte Vedra, é de uma beleza especial. Também surpreende a obra de Zani de Ferranti publicada na Alemanha, que é a primeira e única deste autor em todos os fundos galegos estudados nesta tese, e a moinheira para guitarra publicada por Campo Castro, em Madrid, que é uma das que Inzenga recolhe no seu cancioneiro galego.
Esta moinheira, gravada no CD Guitarra galega Vol. 1 junto de outras três moinheiras para guitarra dos fundos galegos, está formada por várias frases musicais, das quais a quinta aparece já no livro para “biguela hordinaria” (viola corrente) de Antonio de Santa Cruz, do século XVII, e no século a seguir, é a mesma moinheira que glossa e varia o virtuoso Santiago de Murcia. É devido dizer que o que depois conhecemos por moinheira, nos tempos de Santa Cruz e de Murcia foi anotado como gaita.
A família Pintos-Fonseca entregou ao Museu da Ponte Vedra uma boa quantidade do arquivo familiar, mas na altura da redação da tese, na casa familiar conservavam-se ainda alguns documentos fundamentais. Tratava-se das obras manuscritas, compostas e transcritas para guitarra por Javier Pintos, Benigno Lopes Samartim e Antonio Crespí. Também havia cópia manuscrita de dous noturnos de José Ferrer Esteve, uma antiga transcrição de Miguel Carnicer, uma boa quantidade de exercícios e estudos para guitarra de Carcassi, Cano e Aguado copiados por volta da década de 1890 e os métodos de Cano e Ruet.
Nalgumas partituras achavam-se os nomes dos companheiros do grupo musical para o que se tinha realizado, como no caso da obra La Malle des Indes de Georges Lamothe (1842-1894), de que Pintos conservava a parte de guitarra com uma capa adornada com os nomes do resto de componentes e a data de 1895. O primeiro de janeiro de 1889 esta obra tinha sido interpretada pelo Octeto Samartim no concerto de Ano Novo, no Teatro Principal da Ponte Vedra, segundo figura anotado no Diário mais antigo de Javier Pintos.
Os diários, fotografias e outros documentos desta coleção provam a centralidade de Javier Pintos como alma mater das reuniões teosóficas, literárias e musicais na cidade do Leres e revelam uma extensa rede de músicos em contato frequente, por vezes reunidos em torno da Sociedade Filarmónica, em cujos encontros a guitarra era sempre um elemento comum e necessário. Já mencionamos a beleza da partitura para piano, inédita, de Señoráns adornada na capa por um desenho do violinista Benigno Lopes Samartim.
No fundo também se acham dous duos inéditos para guitarra, um deles composto em 1902 por Pintos e dedicado "á mi queridisimo amigo Benigno Lopez Sanmartin, con perdón de los maestros". E outro de 1903 composto para duas guitarras por Samartim e dedicado "á mi querido amigo y compadre Javier Pintos".
Pintos e Beethoven
A veneração de Javier Pintos por Beethoven é algo digno de comentário. Na visita à atual casa familiar de Marina Pintos-Fonseca Sánchez observamos os volumes das 32 sonatas perfeitamente conservados.
Algumas das sonatas contêm longas e eruditas indicações de Javier Pintos anotadas nas margens, sintoma de ter aprofundado no seu estudo. Estes volumes serviram também para o ensinamento das filhas, María Luisa e Eulalia, ambas as duas pianistas.
Além disso, segundo nos relata Marina Pintos, no escritório original do seu avô situado na casa familiar da rua Paio Gomes Charinho, forrado de madeira até ao teto com colunas e adornos diversos, Pintos possuía vários bustos, retratos e imagens de Beethoven que eram complementados com retratos de outros grandes músicos e artistas europeus, todos com quadros de madeira do mesmo tamanho, colocados na parte superior da estância, rodeando as paredes.
Em cima do piano Estela - Antigua Casa Bernareggi achava-se no momento da investigação, sustentado por uma estante original e antiga, um dos volumes das Sonatas.
Um outro elemento essencial do escritório original de Javier Pintos Fonseca era o musiquero, ou móvel para as partituras, onde ainda na nossa visita moderna pudemos consultar vários dos manuscritos para guitarra.
O musiquero estava acompanhado dum imponente revistero adornado na parte superior com uma reprodução da figura do Pensador de A. Rodin, baseado na ideia do poeta Dante Alighieri frente aos portões do inferno na sua Divina Comédia. Também haveria nesse estúdio um gramofone e os discos de 78 rpm, dos quais ainda se conservam várias unidades.
As guitarras de Javier Pintos Fonseca
Mas, o elemento que não podia faltar, num entorno tão bem conservado, são as duas guitarras originais de Javier Pintos Fonseca. Sem etiquetas identificadoras dos seus construtores, ambas as duas apresentam características diferentes.
Uma delas parece mais antiga, de construção francesa, semelhante às outras guitarras originais vistas na segunda parte desta tese, com caixa mais pequena e cintura pronunciada, roseta adornada e um estojo de madeira original forrado em vermelho.
É a mesma guitarra que sustenta Pintos na foto da Orquestra Samartim, que tratamos no apartado de orquestras, e a da foto com os seus amigos em maio de 1895 publicada no nosso artigo imediato anterior. A construção remete para um instrumento de meados do século XIX, o que faz suspeitar se teria sido adquirido e tocado pelo avô de Javier, João Manuel Pintos Villar, a quem conhecemos como violinista.
A ideia não seria descabida tendo em conta que os violinistas-guitarristas eram numerosos na primeira metade do século e que o fundo musical de Pintos contém partituras para guitarra dessa época, como a de Miguel Carnicer, datada em 1854. A presença desse avô, intelectual erudito e afamado, pode sentir-se em toda a vida de Javier Pintos. Prova disto é o retrato renovado, baseado num anterior, que o neto mandou fazer em 1896 ao pintor Daniel Vizcaíno, exibido na loja musical El Siglo do comerciante pontevedrês López Paratcha, retrato que ainda figura entre as propriedades familiares.
Alguns dos elementos construtivos desta guitarra mais antiga lembram as duas anteriores. Com a Voiriot, esta tem em comum o adorno vistoso da roseta e, com a Parizot e Lauriol, a feitura do braço. Todas guardam semelhanças na forma da caixa e, como a Voiriot, esta guitarra de Pintos sofreu a mudança de cravelhame, provavelmente pelo seu uso moderno, pois parece que era instrumento habitual de Javier Pintos.
A segunda guitarra de Pintos tem uma caixa mais volumosa, com uma forma diferenciada, e apesar de parecer o instrumento mais moderno, diríamos que construído em vida de Javier Pintos, portanto, no último terço do século XIX, está em pior estado de conservação.
Esta segunda guitarra está adornada com numerosos embutidos no cavalete, na escala marcando os trastes 5, 7 e 9, na roseta e na cabeça, onde também figuram três iniciais: J. L. V. As iniciais não coincidem com o nome de Javier Pintos, nem com o de outro familiar. Porém, é difícil pensar que possam corresponder ao nome do construtor, pois seria estranho vê-lo na cabeça do instrumento. Não devemos descartar que as iniciais respondessem a alguma frase maçónica, ou série de nomes em chave, pois os jogos de palavras estavam no dia a dia do nosso teósofo guitarrista.
Um dos elementos que parecem colocar esta segunda guitarra no último terço do século XIX é a caixa de ressonância, cuja forma lembra a guitarra Francisco González conservada no parisino Musée de la Musique (Bordas, 1993, p. 161) e cuja parte anterior é feita em duas partes e adornada com uma sanefa. Porém, a sanefa da guitarra de Pintos é mais estreita que a de González e o resto de adornos tampouco coincidem com o estilo sóbrio do mestre ourensano. A falta de etiqueta nas duas guitarras dificulta enormemente a identificação dos seus construtores ou construtoras, mas se bem a mais antiga oferece uma construção semelhante à da viola francesa, a mais moderna seria obra dum luthier peninsular, quem sabe se também galego e mesmo pontevedrês.
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