Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaO misterioso guitarrista Francisco Baltar
Isabel Rei Samartim
Dentro do período Biedermeier galego, que também poderia chamar-se de Montenegrino, pelo valleinclaniano, conservador e doméstico Senhor de Montenegro, ou também Valladaresiano, pela influência que a família
Uma família com vários Francisco Baltar?
Na comarca de Padrão, e também em Compostela, foi e é conhecida uma família Baltar. Sem relação com a outra conhecida família Baltar, de Ourense, cuja necessária pesquisa ultrapassa as nossas possibilidades atuais, os Baltar de Padrão tiveram durante gerações uma intensa atividade cultural. Ângelo Baltar Varela (1827-1895), o primeiro licenciado em Farmácia da Universidade de Santiago de Compostela, foi presidente da câmara padronesa, e amigo e protetor do casal Castro-Murguia. Os seus filhos frequentaram, por diversos motivos, a cidade castelhana de Madrid. A casa familiar conserva-se em Padrão, situada na Praça de Ángel Baltar, lugar onde durante muitos anos se conservou a biblioteca da família. Esta biblioteca foi provavelmente fundada no séc. XVIII pelos escrivães Lucas Baltar e o seu filho Francisco Baltar Marinho.
Será que Francisco Baltar Marinho (Íria, 1753-1796), escrivão, de família acomodada com profissões liberais e ligados a Madrid, estava aparentado com o guitarrista F. Baltar que aparece no fundo guitarrístico do Arquivo Canuto Berea? Os dados parecem indicar que o guitarrista, e também pianista, teria trabalhado durante a primeira metade do séc. XIX, posto que doze valsas para fortepiano de um Francisco Baltar aparecem anunciadas no Diario de Madrid em 1828 (García, 2017, a. 3, p. 402, 406). Também se regista um Francisco Baltar, de novo em Madrid, como professor de harmonia do pianista Miguel Ramón Arenas Rodríguez (Ballesteros, 1912, p. 28).
Não parece possível, portanto, que o Francisco Baltar, morto em Íria em 1796, seja o mesmo Francisco Baltar que se situa em Madrid perto de 1828. Ao ir procurar nos descendentes de Francisco Baltar Marinho achamos que ele e Joana Francisca Varela (m. 1824) tiveram cinco filhos e filhas nascidas entre os anos de 1787 e 1795, que é uma faixa temporal mais provável para o nascimento do nosso guitarrista. Mas nenhum desses filhos, que saibamos, se chamou Francisco. As pesquisas nesta linha não acharam, por enquanto, mais percurso e ficam à espera de novas informações.
A obra conhecida até agora
Saldoni (1881, 4, p. 26) deixa dito que Francisco Baltar era copista de música de los más ilustrados que hemos conocido. Se Baltar vinha de uma família de escrivães seria habitual que continuasse o ofício, mesmo que fosse especializando-se na cópia de partituras musicais.
Quem porventura tenha petiscado alguma informação no texto da tese A guitarra na Galiza, saberá que já temos visto um outro exemplo de copista de música que era escrivão: José Miguel Guerra, o autor do Manuscrito Guerra conservado na Biblioteca Geral da USC e trabalhado pelo harpista galego Manuel Vilas.
Suárez-Pajares tinha registado em 1999 duas obras com guitarra de Francisco Baltar. Uma delas era El polo del contrabandista, para voz e guitarra (ou piano). Esta canção é a n.º 5 do monólogo operístico El poeta calculista, de Manuel García, estreado em 1809 em Paris (Radomski, 2002). Conserva-se um exemplar deste polo na Biblioteca Nacional da Espanha (Baltar, 1876), ainda que é uma edição muito posterior à vida do nosso guitarrista, publicada por Antonio Romero, em Madrid, dentro da série de canções La Sal de España. Seis canciones populares con acompañamiento de pianoforte y guitarra e com a legenda "nuevamente arreglado" (Gosálvez, 1995, pp. 123 e 177). O acompanhamento adorna a conhecida melodia com variedade harmónica e domínio da técnica guitarrística.
Também se conservam de Francisco Baltar, fora dos arquivos galegos, umas variações para guitarra, duas valsas para piano, umas seguidilhas para voz e piano e uma obra para órgão, Tantum ergo. Por estas pequenas amostras da sua obra deduz-se que Baltar não seria unicamente um amador a publicar canções para guitarra, mas um guitarrista profissional e compositor completo, conhecedor de vários instrumentos, dominador da técnica da Harmonia, em cuja música se desenvolve um estilo romântico e inovador, adiantado ao seu tempo.
O repertório de F. Baltar no Arquivo Canuto Berea
As obras aparecidas no Arquivo Canuto Berea da autoria de Francisco Baltar vêm a acrescentar o seu repertório em duas belas canções para voz e guitarra: La Pastorcita e a barcarola El Canto del Marino, ambas as partituras ainda conservam o antigo carimbo da loja corunhesa de Canuto Berea Ximeno e conservam-se ambas as duas na caixa M-613, com os números 63 e 64. As partituras são cópias manuscritas da mesma mão, não necessariamente a de Baltar, que possivelmente foram copiadas de originais impressos cuja edição estava esgotada ou era de difícil aquisição. O estilo de Baltar é romântico, de harmonias modulantes e interpretação exigente, a refletir um guitarrista de alto nível musical.
A barcarola El Canto del Marino anunciou-se à venda em 16 de março de 1842 (Boletín Bibliográfico Español y Estrangero, 1842, p. 91). Vendia-se no armazém de Carrafa junto com outras onze peças para voz e guitarra ou piano, recolhidas no que devia ser um belo livro de pequenas dimensões, intitulado Álbum Lírico ó Coleccion de doce canciones jocosas y sérias con acompañamiento de piano ó guitarra, compuestas por varios profesores. As doze obras eram:
1. La Gitanilla, canción jocosa, por Carnicer; 2. Una sombra, séria, por R. B.; 3. El canto del marino, semi-séria, por F. B.; 4. El último adios, séria, por Ducasi; 5. La barcarola, letrilla de Ochoa, semi-séria, por Ciebra; 6. El gitano, jocosa, por M. J. M.; 7. La inconstancia, séria, por La Hoz; 8. El centinela, jocosa, por Allú; 9. Doña Blanca de Navarra, séria, por Sobejano; 10. El soldado, jocosa, por Cepeda; 11. El Playero, jocosa, por M. Garcia; 12. La compasion, séria, por La Hoz. Esta colección reunida grabada en pequeño.
Desta coleção temos localizadas nos arquivos galegos, além da de Baltar, as número 2 (Fundo Valladares e Arquivo Canuto Berea), n.º 4 (ACB), n.º 5 (FV), n.º 8 (ACB), n.º 9 (FV), n.º 10 (ACB), n.º 11 (ACB) e n.º 12 (ACB). Faltariam três para completar a coleção, que deveu ser muito conhecida no seu tempo: 1. La gitanilla, 6. El gitano, 7. La inconstancia. Estas obras, igual que as de Baltar, conservam-se na Galiza na versão manuscrita. Este facto, mais o estilo da música e os autores evidenciam a sua origem na primeira metade do séc. XIX, se não antes.
El Canto del Marino tem letra dum também misterioso M. E. Blanco, cuja melodia se desenvolve pela tonalidade de Ré M com modulação ao 6º grau, Si bemol Maior, bem arroupada por um acompanhamento harmonicamente denso e cromático, em tempo ligeiro (Andantino), totalmente idiomático para a guitarra e exigente para o intérprete. Começa com uma introdução de guitarra e acaba com uma Coda também guitarrística. A partitura inclui indicações de articulação e carácter.
De La Pastorcita não temos mais informação musical que a que fornece a partitura do Arquivo Canuto Berea. A bela melodia em Lá M está perfeitamente adornada com um acompanhamento ousado, em andamento de Andante Gracioso, que oferece um resultado excelente. A estrutura é A-B-A' com o primeiro tema variado. Merece também atenção a letra do padre José Iglesias de la Casa (1748-1791), pertencente à sua obra poética Letrillas de Estrivillo. Letrillas segundas:
Si el estilo en mis letras 6
Mucho se humilla; 4
Como vengo del campo, 6
No es maravilla. 4
Cantar yo cantara 5
Los campos y flores, 5
La niñez y amores 5
Con que me criara: 5
Mas si es cosa clara 5
Trivial y sencilla; 5
Como vengo del campo, 6
No es maravilla. 4
Esta obra foi publicada postumamente (Iglesias, 1793, pp. 33-35) junto do seu conhecido poemário La esposa aldeana e outras obras do mesmo autor. Para a contagem silábica dos versos usamos o sistema português que conta até à última sílaba acentuada.
A letra parece a dum bolero, ou bolera intermediada, a conter uma seguidilha de quatro versos, onde o 1º e 3º são de rima livre e o 2º e 4º de rima assonante, mais uma secção contrastante. A primeira estrofe é a seguidilha, que vai seguida doutra estrofe contrastante formada por seis versos de cinco sílabas (seis sílabas no sistema castelhano) e a última estrofe, que são os dous últimos versos da seguidilha, colocados a modo de estribilho. A reiteração destes últimos versos, e a realização musical de Baltar, conferem uma beleza especial ao tema, que está posto em boca duma mulher do campo.
Estas duas canções de Francisco Baltar serão proximamente publicadas pela Editorial Viso, dentro dum caderno de partituras para canto e guitarra formado por diversas obras dos fundos galegos.
De novo a família Baltar
Posteriormente, a família Baltar de Padrão continuou na música. Antonio Baltar Domínguez (1906-1970), tataraneto de Francisco Baltar Marinho, casou com Mireia Dieste, pianista e irmã dos escritores Eduardo e Rafael Dieste, de Rianjo, cuja família era também devota da interpretação musical. A própria Mireia Dieste foi uma excelente pianista, na atualidade homenageada anualmente na vila rianjeira. No Fundo Local de Música do Concelho de Rianjo pode consultar-se o arquivo de partituras familiar dos Dieste.
Axeitos (1995) recolhe fotografias dos Baltar e dos Dieste a tocarem diversos instrumentos musicais, entre eles o piano e o bandoneom. Também é sabido que Rafael Dieste, além dum dos nossos melhores escritores, era um entregado pianista. Chegados a este ponto, reparamos numa imagem de Antonio Baltar e Mireia Dieste saindo para Buenos Aires. Na imagem, publicada por Axeitos (p. 136), vê-se o matrimónio sendo despedido por outro matrimónio, Carmen Muñoz e Rafael Dieste. O escritor e pianista galego sustenta um dos vultos da bagagem dos seus parentes. Precisamente, uma guitarra.
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