Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaO guitarrista troiano Júlio Mirelis Garcia (ca. 1860-1933)
Isabel Rei Samartim

Júlio
Em 1863 aparecem na imprensa pontevedresa as que parecem irmãs de Encarnación e o próprio Francisco como atrizes e ator na obra de teatro representada na função inaugural do Conservatório artístico e literário. Este é o primeiro conservatório pontevedrês, denominado Conservatorio Literario e Artístico del Príncipe D. Alfonso e inaugurado em 1863.
As inclinações artísticas familiares teriam passado aos filhos, como vem sendo habitual nos estudos musicais. O filho Francisco aparece na imprensa em 1887 apoiando um comunicado da Unión Carrileña, sociedade de declamação e música de que era membro (GdG, 1887). Dele sabemos que trabalhou junto do irmão José, na estação do ferrocarril em Compostela e também em Ourense (GdG, 1893). Finalmente, Francisco emigraria para o Brasil junto do irmão guitarrista Júlio, onde casou e morreu nos finais de novembro de 1952 (CdM).
Alguns dos parentes que ficaram na Europa colaboraram mais tarde com a ditadura franquista. Francisco Mirelis Malvar foi novo vereador na Câmara de Moinhos (Ourense) em agosto de 1936 e Antonio Mirelis García foi reconhecido como ex-combatente pela Falange em 1944 (EBdE, 1845; GdM, 1859; DOdMG, 1894; GdG, 1905b; ECG, 1940; MHVL, 2018; EC, 1944).
O que sabemos da vida de Mirelis
Júlio Mirelis García, nascido perto de 1860 aparece pela primeira vez na imprensa galega em 1892 (GdG, 1892b) como autor do Método completo de guitarra. Arreglado conforme á las teorias musicales de la Academia. O método, impresso por José Maria Paredes em Compostela, inclui na última página o endereço Rua das Hortas, n.º 40, indicando que aí se devem dirigir as encomendas ao autor. Dous anos mais tarde, Mirelis já se acha no Rio de Janeiro, aonde emigrou possivelmente pelo final do ano 1893 (OP, 1893) e onde funda o orfeão Lira Gallega, possivelmente dentro dum Centro Galego ou comunidade galega no Rio. Com o tempo, o guitarrista deveu adquirir a nacionalidade brasileira e entrar na elite do país, pois pelas notícias sabemos que Mirelis foi diplomático do Brasil para Barcelona, como auxiliar do cônsul, e para a Argentina, como vice-cônsul na cidade de Rosario de Santa Fé (AL, 1926; RdI, 1927). Em 1929 viaja à Galiza com objetivos diplomáticos em Barcelona e Sevilha. Em Barcelona estava acontecendo a Exposició Internacional inaugurada em 19 de maio e em Sevilha, em paralelo, decorria a Exposición Iberoamericana. Finalmente, temos notícia da sua morte no Rio de Janeiro em 1933. Na nota da sua defunção aparece o nome da que foi a sua esposa e viúva, a brasileira Noemia Fialho Mirelis (EPG, 1929a; AN, 1933).
A sua atividade musical na Galiza e no Brasil
Júlio Mirelis García é tratado na imprensa com imenso carinho, como guitarrista e pintor, membro da Casa da Tróia e regente dos orfeões Está bien e Lira Gallega. O primeiro orfeão foi também dirigido por , músico compostelano ligado aos grupos de plectro e à tuna (GdG, 1892a). Mirelis poderia ter frequentado a amizade de Álvaro Soto, Pepe , António Abad, , Castanheda, Acevedo e outros músicos ligados à Casa da Tróia e à .
Além disso, foi discípulo do professor Joaquín Zuazagoitia, professor e diretor da Escola de Música da Sociedade Económica, que morre em 1893 (Freitas, 2016) e do pintor José María Fenollera Ibáñez (Valência, 1851 - Compostela, 1918), pintor valenciano, professor em Compostela desde 1887, autor entre outras obras dos frescos do paraninfo da faculdade compostelana de Geografia e História (Fernández-Cid, 2003; GdG, 1894):
tan pronto se le escuchaba tañendo las cuerdas de su guitarra en la rondalla, dando serenata á alguna hermosa, como recitando ó declamando en un coliseo; si aqui no le encontrábamos, le hallamos seguramente en su estudio haciendo alguna creación, ó en el Museo sacando una copia fiel de Murillo ó Miguel Angel; si por otro lado se le buscaba se hallaría tocando el órgano ó piano en la congregación de San Luis, ó ensayando el orfeón Está bien y cuando se aproximaban los carnavales era seguro verle ensayando el coro ó orquesta de alguna comparsa ó tuna de la que siempre hacía parte interesante y necesaria, dígalo si nó la que últimamente salió de esta ciudad que al dar el concierto de despedida en nuestro teatro hizo las delicias del público en el apropósito del laureado poeta Labarta tocando el pito, pandera, guitarra y bandurria y todos cuantos instrumentos pretendía. Nunca nos olvidaremos de Julio Mirélis, deseándole toda suerte de felicidades allende los mares y que en su dia podamos abrazarle feliz.
Das composições de Júlio Mirelis documentam-se unicamente as duas com que remata o método de guitarra, mais uma alvorada para coro e uma obra intitulada El Cantarillo, interpretadas pelo orfeão Lira Gallega no Rio de Janeiro e dirigidas pelo próprio Mirelis em 7 de fevereiro de 1894 (JdC). Nesse mesmo ano, meses mais tarde, Mirelis figura na imprensa galega de Buenos Aires como regente do orfeão do Centro Galego e autor do método que deixa como prenda na redação do jornal El Eco de Galicia de Buenos Aires (EEdG, 1894). Assim, as obras musicais documentadas até ao momento de Mirelis García são:
1.- Polka Los Liñares para guitarra só (com partitura).
2.- Wals Pilar para guitarra só (com partitura).
3.- Alvorada para coro (sem partitura).
4. El Cantarillo, melodia para coro (sem partitura).
O método de guitarra de Júlio Mirelis
O Método completo de guitarra (1892) de Júlio Mirelis é o primeiro método para guitarra documentado e publicado na Galiza. Outros textos didáticos galegos dos séculos XVIII-XIX são as Advertências iniciais anotadas no Caderno do Francês, a Esplicacion de los rudimentos de música apropiada á la guitarra para el uso de A. V., que achamos ser o método pelo que estudou guitarra Avelina Valladares, outros textos soltos do fundo Valladares e o método perdido (?) de José María Canals, do qual só nos chegou a descrição de Pedrell.
O Método do guitarrista e maestro Júlio Mirelis García foi publicado em 1892 na conhecida imprensa de Paredes, pouco antes do seu autor emigrar para o Brasil. No texto o autor fala desde o conhecimento popular do instrumento. Sem citar outros autores, a única referência parece ser a sua própria experiência. Começa explicando o modo de colocar a guitarra, os tons relativos, como se dispõem as notas sobre a escala, o sistema de afinação das cordas, que é o convencional no seu tempo, pisando no quinto traste salvo na 3º corda que é no quarto. Mirelis continua explicando questões de Linguagem musical como os sustenidos, bemóis e bequadros e as tonalidades e seus relativos, dando muita importância à aprendizagem dos acordes.
Isto deve-se a que o autor, além de ver a guitarra como instrumento solista, expressa claramente a sua função acompanhante:
y á falta de este pediremos al instrumento que lleve la parte cantante el La (p. 8).
Sabiendo afinar bien, se vencen fácilmente muchas dificultades que en el uso de este instrumento, se nos presentan ya para el canto, ya para el acompañamiento (p. 9).
Ninguna regla fija hay para acompañar, y menos de afición, por lo que debemos desde un principio acostumbrar el oído a que distinga quando debe mudar de tono (p. 17).
As tonalidades são explicadas com as escalas, sempre ajudadas de ilustrações, que consistem numa tablatura vertical onde os números indicam as posições dos dedos da mão esquerda. Nas suas explicações, o autor distingue entre Música e Som. A primeira é a arte de expressar e comover. O segundo é vibração sonora. E denomina “variações” os acordes que conformam uma sucessão de V-IV-I na mesma tonalidade, por exemplo Sol M 7ª - Fá Dó, ou Mi - Rém - Lám.
A palavra “variação” tem a ver com a mudança de acordes. A sucessão dos acordes pelos diferentes graus e funções tonais da escala dentro de uma mesma tonalidade é percebida pelo guitarrista Mirelis como “variações”, que devem entender-se como “variações tonais”, ou seja, a existência de diferentes acordes (a implicarem tecnicamente diversas posturas da mão esquerda) dentro de uma mesma tonalidade. O método inclui indicações para conhecer a tonalidade de uma obra musical.
Nos diferentes acordes, o autor repete a explicação adaptando-se à nova tonalidade. Chega até ao Fa#M e Ré#m. O autor explica os 24 tons “de que consta la Guitarra”, parando em RebM e Sibm, pelo que faltaria DóbM que poupa por ser inarmónico de SiM.
As referências aos dedos da mão direita figuram nas explicações antes das duas partituras publicadas no método, onde diz que os dedos primeiro, segundo e terceiro (i, m, a) estão indicados nas notas com plicas para cima e o polegar liga-se às notas das plicas para baixo. Nestas explicações o autor distingue entre a voz do canto e a do acompanhamento.
O método é uma publicação absolutamente original e inédita nas imprensas galegas do seu tempo. Para a história da guitarra galega significa, por um lado, a evolução dos métodos ou anotações didáticas anteriores, que eram manuscritas, e por outro lado, a evidência do uso popular do instrumento refletida em papel impresso.
Comentarios