Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaO fundo guitarrístico de Jesus Ínsua Yanes (1)
Isabel Rei Samartim

Por mediação do músico e amigo conhecemos a família do guitarrista ortegano Jesus Yanes (1933-1994), que conserva no seu arquivo pessoal várias partituras impressas para guitarra da metade do século XIX. Este artigo trata principalmente desse fundo histórico de partituras, e no próximo abordaremos a vida e atividade artística de Ínsua Yanes em Ortigueira.
Jesus Ínsua herdou essas partituras do seu tio, José María Yanez Fraga, pároco na localidade de Espasante que, como Ortigueira e Carinho, são todas localidades próximas e situadas na costa Norte galega. A coleção é um breve mas interessante conjunto de obras da segunda metade do século XIX, as quais requerem todas um bom desenvolvimento técnico para a sua interpretação.
As partituras conservadas por Margarita Ínsua Cal, filha de Jesus Ínsua Yanes, foram publicadas na Espanha, França, Itália e Inglaterra. O fundo está formado por 19 obras, sendo que 16 têm uma numeração moderna e 3 delas estão sem numerar. A datação das obras faz suspeitar que tivessem sido adquiridas não pelo padre Yanez, mas por alguém anterior a ele.
O carimbo da Cartería de Porcia está em quase todas as obras do fundo. O correio de Pórcia (Návia) era, no século XIX, o ponto de chegada das cartas que iam para o Norte da Galiza. Portanto, o ponto de entrada na Galiza destas partituras foi Astúrias. Desde ali, alguém relacionado com o padre Yanez ou com um familiar anterior, teria enviado as obras pelos correios. Depois o próprio Yanez deixaria este legado ao seu sobrinho, Jesus Ínsua Yanes, de Ortigueira. Temos assim um fundo particular de origem forânea, que passa das antigas gerações às mais novas entre membros da mesma família, sendo todos guitarristas galegos.
Características do fundo de Jesus Ínsua
O conjunto de partituras de Jesus Ínsua é muito unitário, pois compreende obras da mesma época, que foram adquiridas da mesma forma. Trata-se do fundo musical de um guitarrista de grande técnica, que estava à última moda das melhores publicações do seu tempo. Entre os autores guitarristas estão os espanhóis José María Ciebra e Florencio
Como vemos, uma característica fundamental desta coleção de partituras é a presença de vários guitarristas esquecidos, sobre os quais pouca investigação se tem feito, e cujas obras nos resultam hoje desconhecidas, apesar de muitas delas estarem inspiradas por outras bem conhecidas do grande público, como são as óperas italianas. A descoberta de Mertz tem já várias décadas, foi gravado por guitarristas de diversos países e faz parte das programações das escolas de música. Mas outros autores como Ciebra, Gomez Parreño, Costa Hugas, ainda sendo estudados, são menos difundidos, e somente achamos alguma gravação e obra modernamente publicada das suas obras. Já as referências aos Gardana, Tonassi, Neuland ou López são mínimas, alguma breve menção num dicionário, na Wikipédia, ou algum artigo num blog especializado. Todos estes autores estão reclamando maior atenção académica, tanto na pesquisa da sua vida e obra, quanto na gravação e revitalização da sua música.
A ópera no fundo de Ínsua Yanes
Além da música para guitarra de criação original, várias das obras estão inspiradas em temas operísticos, também sinfónicos como o de Mendelssohn, e filosóficos como o de Tomás de Aquino no Tantum Ergo (letra do conhecido hino Pange Lingua). Assim, os autores não guitarristas presentes no fundo são Daniel François Esprit
As dez obras do guitarrista castelhano Florencio Gomez Parreño
Do advogado e guitarrista de Madrid, Florencio Gomez Parreño (ca. 1810 - depois de 1880), conservam-se neste fundo os seguintes títulos: 1. La Faitiguiya. Canción andaluza, 2. La amistad, 3. Variaciones compuestas para guitarra dedicadas a Ángela Morejón, 4. Variaciones compuestas para guitarra dedicadas a Gerónimo Daguerre, 5. Variaciones sobre el tema de la Lucrecia, 6. Fantasia para guitarra dedicada a los guitarristas, 7. Fantasia para guitarra dedicada a Miguel Agustín Principe, 8. Polka mazurka, 9. Mi arpa. Capricho para guitarra e 10. Fantasia sobre el Tantum Ergo.
As obras de Gomez Parreño, publicadas por ele mesmo, levam um número de prancha com as iniciais do seu nome e primeiro apelido (F.P. 1, etc.), salvo as impressas por Wirmbs, que não levam número, e que são a canção andaluza La Faitiguiya e a Polka mazurka. Outras partituras indicam que eram vendidas no "Almacén de Conde y Guitarreria de Campo", dois armazéns de música madrilenos da época. A loja de Campo era a oficina do violeiro Benito Campo e do seu filho José Campo Castro, já conhecidos dos amadores da guitarra galega por terem publicado uma moinheira para guitarra. A relação com os vendedores devia ser boa, pois Gomez Parreño dedica a sua Fantasía sobre La Lucrecia aos irmãos José e Agustín Campo. Mais abaixo continuaremos as reflexões sobre este guitarrista, que definem de maneira fundamental este fundo.
A obra de José María Ciebra
Intitula-se Fantasia for the Spanish Guitar upon a favorite French Air in Auber's Opera "La Fiancée". N.º 1. Na primeira página a partitura indica uma afinação da guitarra em Mi M [Mi, Si, Mi, Sol#, Si, Mi]. No canto inferior direito da capa tem manuscrita a dedicatória "Al Sr. D. n Mariano Reinoso. / el autor / Jose Mª de Ciebra". Mariano Miguel Reinoso Abril foi um militar, político e ministro castelhano que realizou numerosas atividades culturais no seu Valladolid natal antes de trabalhar nas Cortes em Madrid.
A British Library indica no seu catálogo que esta obra foi publicada em 1839 por Ciebra. Tem sido republicada por
Duas obras de Wilhelm Neuland
As duas obras operísticas do alemão Neuland para duo de piano e guitarra foram publicadas em Paris por S. Richault. A Bibliotèque Nationale de France data a sua atividade entre 1820 e 1898. As duas obras do fundo Ínsua Yanes têm números de prancha quase seguidos: 6076 e 6078, o que pode indicar que o editor as publicou num breve espaço temporal. Ambas as obras estão baseadas em temas das óperas Anna Bolena de Donizetti e I Capuletti e i Montecchi de Bellini, que foram estreadas em 1830. Estas obras acham-se na Biblioteca Musical Petrucci (IMSLP) em partituras doutros editores. No caso do fundo Ínsua Yanes, as possíveis datações das publicadas por Richault vão desde a data de estreia das óperas até ao cesse da atividade do editor (1830-1898), ainda que nós achamos que teriam sido publicadas nas décadas centrais do século XIX.
Quatro obras editadas em Milão
Os dous editores milaneses são a casa Ricordi, através de Giovanni Ricordi (1785-1853) e o seu filho Tito Ricordi (1811-1888) e a casa de Francesco Lucca, que nessa altura estava associada à de Ducci na Florença e Blanchi em Turim.
Das seis peças de Costa, na coleção ortegana figura a primeira completa. Este exemplar da obra Grande Andante della 4.ª sinfonia di F. Mendelssohn Bartholdy é uma redução para guitarra da obra sinfónica e está oficialmente dedicada pelo seu autor a Hilarión Eslava. Mas, a partitura da nossa coleção contém na capa outra dedicatória manuscrita do autor: "A mi querido amigo y compositor, al eminente guitarrista Sr. D. Florencio Gómez Parreño. Costa". Temos, portanto, aqui uma ligação de excelência entre estes dous grandes guitarristas representados na coleção de Ínsua Yanes, sobre a que voltaremos mais abaixo.
Para a datação desta obra consultamos Mangado (1998, p. 178), que toma a data da edição de Antonio Romero em 1872. Curiosamente, a Biblioteca Petrucci data do mesmo ano a edição de Lucca do livro com as seis peças, o qual figura-se-nos um bocado estranho. É possível, ainda, que as edições de Romero e Lucca não fossem as primeiras e estas obras de Costa Hugas foram publicadas com anterioridade a essa data.
Sobre Francesco Lucca, o editor de Milão e competidor de Ricordi, desde os estudos de guitarra na Galiza podemos dizer que se na década de 1870 estava associado a Ducci na Florença e Blanchi em Turim, já na década de 1890 vemo-lo associado ao próprio Tito di G. Ricordi na partitura Flora. Polka brillante de G. B. Pirani, arranjada para cordofones dedilhados por Giuseppe Bellenghi, que se acha no fundo guitarrístico do Arquivo Canuto Berea. De modo que através da música dos fundos galegos achamos pistas para a reconstrução da história editorial fora da Galiza. Já o vimos com as editoras argentinas ao falarmos de Francisco Núñez e agora de novo com as italianas neste breve, mas interessante, fundo de guitarra.
A fantasia sobre um tema de Rigoletto de Mertz, publicada por Tito di G. Ricordi, achamo-la numa edição alemã datada de 1853 pela Biblioteca Petrucci. Pocci explica que o pai Giovanni Ricordi estampou uns 25.000 números de prancha até esse ano. Sendo o exemplar deste fundo o n.º 29.146 parece possível que a edição tenha sido entre 1853 e 1854. A outra obra publicada por Tito di G. Ricordi é a do guitarrista italiano Enea Gardana sobre um tema de Donizetti, que o catálogo em linha da Ricordi data de 1860. Também consultamos esse catálogo para datar a fantasia sobre um tema de Saffo, de Pietro Tonassi, onde comprovamos que a última obra registada é a número 13.637 que corresponde ao ano de 1842. Não há registos para o número da nossa edição: 17.911, mas tendo em conta que Giovanni Ricordi morre em 1853, podemos estabelecer um período entre 1842 e 1853 para a publicação desta obra.
Barcelona e Madrid
A segunda obra de Josep Costa Hugas conservada neste fundo de guitarra é a Fantasia con variaciones, editada por Budó em Barcelona e dedicada ao seu mestre Pascual Pérez Gascón. A partitura deste fundo coincide em tudo com a comentada por Mangado (1998, p. 178). Além disso, no nosso exemplar há uma dedicatória manuscrita na parte superior esquerda: "A D. A. Palacios // Su Amigo // El Autor". Ainda é um mistério quem era D. A. Palacios (Dom A.? Palacios), qual a amizade que o ligava ao guitarrista catalão, e o motivo por que aparece na coleção de Ínsua Yanes.
Por último, a única peça editada por Bernabé Carrafa deste fundo é a Barcarola da ópera La prigione di Edimburgo de Ricci, arranjada para guitarra por um tal López. Achamos que este guitarrista poderia ser o F. F. López do Álbum de Fernando de Torres Adalid porque a obra ali contida é a valsa da mesma ópera. Porém, é só uma hipótese. Um outro López seria López Muñoz, também presente em Torres Adalid. A valsa no livro de Fernando de Torres está manuscrita e sem mais indicações. A barcarola do fundo de Jesus Ínsua Yanes está impressa com o número de prancha de Carrafa: B. (48) C., e no endereço da rua do Príncipe, 15, Madrid, o que indica uma possível faixa temporal entre 1838, que é a data da estreia da ópera, e 1859 segundo o estudo de Gosálvez Lara (1995, p. 145) como data do fim da atividade de Carrafa como editor único.
Gomez Parreño, Costa Hugas e a Galiza
As duas dedicatórias presentes nesta coleção, do punho e letra de Josep Costa Hugas, são elementos que a tornam muito valiosa para saber mais destes autores. Elas são prova de que as partituras teriam pertencido ao próprio Gomez Parreño e ao ainda desconhecido A. Palacios. O facto de aparecerem juntas poderia indicar outra possível relação entre as três personagens. Tendo em conta a característica unidade espacial e temporal da coleção de Jesus Ínsua Yanes, e a presença destas dedicatórias, há uma evidente conexão com a Galiza ainda não explicada. Talvez o Padre Yanez, tio de Jesus Ínsua, ou algum familiar anterior, fosse essa conexão com Gomez Parreño e A. Palacios, ou com alguém na Espanha que possuía as partituras deles. Em todo o caso, as provas ligam estes autores com a Galiza e fornecem pistas para a reconstrução das suas vidas.
Conclusão
Para além das pesquisas históricas, por vezes algo complexas, que se precisam para a datação dos fundos e calcular a importância histórica destes, é imperdoável que havendo esta quantidade de repertório romântico de qualidade, agora acessível na sua maior parte através da Biblioteca Petrucci, @s intérpretes continuem a dedicar as suas vidas ao estudo das mesmas e conhecidas obras, mil vezes gravadas e tocadas já em todo o globo. Com efeito, a reinterpretação do estabelecido nos repertórios clássicos serve para a formação dos intérpretes, mas essa prática reiterada ao longo de toda a vida leva ao estancamento e a reprimir a criatividade, além de não contribuir para o alargamento do repertório e só atender à concorrência com outros intérpretes. Nada disto último interessa para o desenvolvimento da nossa guitarra. Por isso, desde aqui e aproveitando o tempo estival, propício para a renovação, animamos a toda a galera de guitarristas a mergulhar nestas obras, dedicar-lhes um tempo de estudo e levá-las às salas de concertos.
Comentarios