Entrevistas
Martin Muehle: 'A ópera como gênero musical está conhecendo o seu momento mais baixo, mais incerto e duro'
Juan Carlos Tellechea

O excelente tenor Martin Muehle tem sido amplamente aclamado e elogiado pelo público e pela crítica nos últimos meses na Europa: mais recentemente na Deutsche Oper Berlin no papel de título de Umberto Giordano Andrea Chenier, sob a direção musical de John Fiore e régie de John Dew. Este ano e no próximo estão com bom aspecto para Muehle: em maio ele voltará ao mesmo palco na capital alemã como Il Cavaliere Renato des Grieux em uma produção de Manon Lescaut sob a batuta de Andrea Sanguineti e encenação de Gilbert Deflo; e em julho interpretará Calaf em um Turandot dirigido por Nicola Luisotti e Diego García Rodríguez, com régie de Robert Wilson no Teatro Real de Madrid.
Após mais de duas décadas de ausência do Brasil, Martin Muehle retornará a sua cidade natal, Porto Alegre, em 27 de agosto, em um concerto solo com a maravilhosa soprano Cláudia Riccitelli.
Um novo amanhecer é merecido na carreira deste tenor extraordinário que estreou com grande sucesso em setembro e outubro passados nos papéis de Mario Cavaradossi (Tosca de Giacomo Puccini) e Otello (Otello de Giuseppe Verdi), respectivamente na Ópera Estadual de Stuttgart (dir.: Killian Farrell; re: Willy Decker) e na Ópera Estadual de Hannover (dir.: Stephan Zilias; re: Immo Karaman). Martin Muehle, treinado em Montevidéu (Uruguai) com o maestro Juan Carlos Gebelin, e no prestigioso Conservatório de Música de Lübeck (1992), muito gentilmente concordou em dar uma entrevista com Mundoclasico.com. Estas são suas declarações exclusivas:
Juan Carlos Tellechea: O que o tem deixado muito feliz nos últimos tempos?
Martin Muehle: Tive a oportunidade de debutar dois papéis maravilhosos num mesmo ano: Otello (Staatsoper Hannover) e Cavaradossi (Staatsoper Stuttgart). Isso me fez muito feliz !
Que lições você aprendeu da pandemia?
A Pandemia me ensinou que nada é certo. Que nossa profissão, assim como nossa vida é frágil e passageira. Aproveitar cada momento da vida sempre !
Como você vê e domina as dificuldades técnicas de Andrea Chenier, Don José (Carmen), Pollione (Norma) e Radamès (Aida)?
Don Josè é o papel que mais cantei, junto à Andrea Chènier. Ambos me são muito congeniais. Em Carmen, Don Josè é o personagem que sofre as maiores e bruscas mudanças. Portanto tem um caracter mais interessante para quem ama se entregar ao pathos e ao drama como eu !
Já Andrea Chènier, o eterno poeta, tem na maravilhosa música de Giordano e no apaixonado libreto de Illica, todo o "alimento" que precisa para esta obra prima do verismo. A música tem uma força romântica que me carrega e me faz descobrir novas nuances a cada nova produção. As dificuldades técnicas de ambos papéis só podem ser "dominadas" ou enfrentadas de forma madura por um intérprete que seja maduro tanto em cena quanto vocal e musicalmente. De outra forma não se faz jus à um papel deste envergadura. Eu apenas enfrentei ambos quase aos 40 anos de idade após muitos anos no repertório lírico.
Radamés é um Verdi no apogeu. Verdi é o maestro dos cantores no repertório italiano. Para enfrentar Radamés ou qualquer outro papel heroico verdiano, a técnica vocal tem que ser extremamente madura nos moldes belcantistas. A escrita verdiana pede o domínio da voz na região da "passagem". Sem este domínio um cantor não chegaria ao fim da primeira ária, quanto mais ao final da ópera com a voz sã.
Pollione tem uma escrita muito ingrata. Pede um acento heroico dentro de um molde de belcanto. Deve ser um contraponto à doçura de Adalgisa e ao pathos de Norma, mas sempre está na tessitura aguda e acima da passagem, tornando tudo um tanto mais difícil para uma voz mais dramática.... mas é exatamente este peso que torna Pollione tão interessante. Dar este papel à cantores rossinianos ou lirico ligeiros (como é moda hoje, mais e mais), segundo minha visão, é um erro.
Quais papéis você ainda gostaria de desempenhar no futuro e quais repertórios você gostaria de aprofundar (italiano, francês, alemão, russo...) e por quê?
Neste momento, após ter debutado Otello, meu desejo é ter mais oportunidades de enfrentá-lo. Papéis desta envergadura precisam de tempo para serem bem "degustados" e descobertos em suas nuances. Otello, sendo o apogeu de Verdi, une à escrita verdiana, um acento quase verista, sem no entanto o ser. O erro que muitos cantores fazem é enfrentá-lo como se fosse verismo. A escrita verdiana aqui é tão genial, que o compositor carrega o intérprete por sua partitura de forma extremamente orgânica.
A real dificuldade aqui é não se atirar no pathos emocional de Otello e sim manter o acento vocal dramático nos moldes verdianos. Uma voz adapta à Otello não se cansa!
Em breve devo debutar o papel de German na opera Pikowaya Dama de Piotr Chaikovsky. Este papel é um grande desafio para mim pois cantar algo numa língua completamente estranha torna tudo muito mais dificil. Aqui a maravilhosa e envolvente partitura de Chaikovsky junto ao tragico libreto baseado em Aleksandr Pushkin, formam uma obra de extrema profundidade. Estes papéis já me darão bastante trabalho em um futuro muito próximo.
O que você acha de cantar Richard Wagner (por exemplo, Lohengrin recentemente na Ópera de Leipzig) - isso é o que você acha? Diz-se que há cada vez menos tenores para as obras de Wagner, você compartilha dessa opinião? Você precisa ter uma constituição especial para cantar suas obras, caso contrário há um desgaste na voz? É perigoso ficar sempre com Wagner e não procurar uma voz mais flexível em outros repertórios?
Uma pergunta não fácil de responder.... Wagner vem sendo afrontado por cantores mais e mais "especializados" (um termo que abomino).
O volume das orquestras atuais parece forçar toda uma geração de cantores à transformar suas vozes em instrumentos musicais rígidos.
Sim, é possível observar uma perda na elasticidade e nas nuances no canto "especializado" wagneriano. Onde muitos artistas já não conseguem cantar Verdi ou Puccini ou Mozart mesmo ainda não chegando ao 60 anos.
Eu tive a oportunidade de experimentar cantar o Siegmund em Die Walküre, o que me deu extrema satisfação. No entanto a tessitura grave deste papel logo me mostrou que meu instrumento não era adequado à esta escrita.
Já Lohengrin tem uma outra escrita. A tessitura aqui é muito mais aguda e talvez até "italiana" no sentido de fraseado. Lohengrin me deu e me dá muita satisfação de cantar. Não vejo necessidade de forçar minha voz seja no controle do volume, seja na escrita aguda (sempre sobre a "passagem").
Certamente meu approach é muito mais italiano e legato que o da maioria de meus colegas alemães que só cantam este repertório. Mas é exatamente isso que pode tornar Wagner tão interessante!
O que você está preparando para seu próximo show solo em Porto Alegre? Com que freqüência você canta no Brasil?
Neste recital em Porto Alegre com a minha querida OSPA (Orchestra Sinfônica de Porto Alegre, Rio Grande do Sul), terei a oportunidade de cantar junto à minha esposa, a Soprano Claudia Riccitelli, um repertório praticamente dedicado ao verismo italiano. Com passagens por Andrea Chènier e Cavalleria Rusticana assim como Tosca de nosso adorado Puccini... !
Claudia é aqui intérprete ideal e artista de uma generosa e abundante voz e interpretação sempre comovente.
Este concerto marca minha volta à Porto Alegre depois de mais de duas décadas!
Não tenho tido possibilidade de agenda para vir ao Brasil ou à America Latina já há algum tempo.... Mas quero mudar isto !
Como você vê o mundo da ópera ultimamente?
Obrigado pela oportunidade. Escrever ou falar sobre isso é difícil. É duro. E é triste. A ópera como gênero musical está conhecendo o seu momento mais baixo, mais incerto e duro. Não teria como apontar todas as questões aqui infelizmente. Para isso precisaríamos de mais espaço e tempo!
Mas posso tocar em alguns pontos que me vêm à mente (sem necessariamente apontar soluções...):
Cada vez mais jovens cantores que se formam e começam carreiras sem a base técnica vocal e musical necessárias. Jovens que querem se tornar stars antes mesmo de saber como funciona seu instrumento. Cantores que afrontam repertório equivocado. Em geral mais pesado para sua idade, experiência ou qualidades vocais.
Professores de canto que não sabem cantar. Que ensinam sem ter tido alguma carreira em teatro. Maestros que não sabem cantar. Que não conhecem o instrumento voz.
Despreparo de jovens que os levam a aceitar disparates de diretores cênicos e musicais. Desrespeito e ignorância aos grandes maestros do passado (a nossa é uma arte de imitação. aprendemos à cantar como aprendemos à falar!) Como cantar hoje sem saber/entender quem foi Caruso, Gigli, Rosa Ponselle, Del Monaco....????
Enfim tudo isso se vê e se ouve em produções medíocres pelo mundo afora. Egos se degladiando na desértica arena de vaidades e ignorância. A ópera é um trabalho conjunto. Um somatório de excelências para um resultado maior que cada um! Não é cenário para stars venderem seu novo álbum.
Enfim.... poderíamos continuar aqui ad eternum mas me falta a energia. Afinal preciso encontrar o prazer e a alegria de cantar apesar da aridez do nosso cenário!
Que anedota engraçada, engraçada ou humorística você se lembra de algo que lhe aconteceu (e não é bem conhecida) que você gostaria de contar?
Meu primeiro professor de canto, o baixista-barítono Juan Carlos Gebelin, com quem comecei a estudar em 1989, me ensinou algumas coisas em Montevidéu (Uruguai) que carrego comigo até os dias de hoje. Uma delas é respeitar o compositor. Ele também me disse um dia: "Martin, vive para tua tripla!!!! " E "nunca enfrente Andrea Chènier ....!!!" (risos) ...Até os melhores mestres podem cometer erros! Você sempre tem que acreditar em si mesmo! Meus agudos ainda estão intactos, e Chènier tem sido meu "companheiro de palco" há mais de 4 anos!
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