Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

O fundo guitarrístico de Jesus Ínsua Yanes (2)

Isabel Rei Samartim
jueves, 22 de septiembre de 2022
Guitarra de Jesus Ínsua Yanes © 2022 by Isabel Rei Samartim Guitarra de Jesus Ínsua Yanes © 2022 by Isabel Rei Samartim
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A vila de Ortigueira, pátria originária do grande escritor cubano Lino Novás Calvo, tem atividade musical documentada desde a segunda metade do século XIX. Luís Alonso Salgado (1987), cronista ortigueirês, recolhia na vila do mítico gaiteiro Chumim uma rusga de entrudo com cordofones dedilhados em 1899 e outras nas décadas de 1930 e 1950. Este autor também incluiu a representação em 1903-1904 no Casino Ortegano da passagem bíblica Natividad, o que seria uma espécie de auto sacramental laico, com a participação de uma orquestra dirigida pelo compositor da música, Pedro Castiñeiras Villarnovo, e integrada pelos músicos Nicolás Rubido e Paco Teijeiro, entre outros.

Ortigueira, terra de músicos

Família e amizades de Jesus Ínsua. Fonte: Arquivo familiar. © 2022 by Isabel Reu Samartim.Família e amizades de Jesus Ínsua. Fonte: Arquivo familiar. © 2022 by Isabel Reu Samartim.

Além do padre Yanes, tio materno de Jesus Ínsua, sabemos que o pai, Dodolino Ínsua Amieiro, nascido em Mondonhedo, era também guitarrista. O irmão Augusto, tio paterno de Jesus Ínsua, era gaiteiro e membro do conhecido grupo de gaitas ‘Os Pacheco’. Margarita Ínsua Cal relata-nos como Dodolino Ínsua e Carmen Yanes, saíam frequentemente às ruas de Ortigueira onde cantavam e se acompanhavam na guitarra com o concurso da vizinhança. O avô de Jesus Ínsua Yanes era o artista prateiro Jesus Ínsua Pedrosa, mindoniense que construiu uma gaita de prata conservada no arquivo familiar. Os Ínsua eram de Mondonhedo, mas também os Yanes, que eram originários do lugar dos Moinhos, o mesmo lugar onde nasceram os Salaverri, de quem falamos há já um tempo.

O contexto familiar de Jesus Ínsua Yanes (Ortigueira, 1933–1994)

Jesus Ínsua com gaita. Fonte: Arquivo familiar. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Jesus Ínsua com gaita. Fonte: Arquivo familiar. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

Num artigo publicado no jornal La Voz de Ortigueira, em 16 de dezembro de 1994, dous meses mais tarde do falecimento do guitarrista, Alonso Santiago lembra que Dodolino Ínsua e Carmen Yanes mantinham na vila um bazar na rua de Oriente, chamado o “0,95”, do mesmo estilo dos antigos “Tudo a cem”, e também eram coproprietários do cinema Espanha, na Avenida Francisco de Santiago. Eram, portanto, gentes bem conhecidas na comarca por vários motivos, além do estritamente musical.

Também o próprio Jesus Ínsua era bem conhecido pelo seu emprego na área de Recadação, no Concelho de Ortigueira. Alonso Santiago indica que o guitarrista realizava o seu labor com grande afabilidade e trato humano, e descreve-o como pessoa discreta e amante da sua família.

Jesus Ínsua, guitarrista ortegano

Jesus Ínsua Yanes em 1953, no recital do lar de idosos, em Ortigueira. Fonte: Arquivo familiar. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Jesus Ínsua Yanes em 1953, no recital do lar de idosos, em Ortigueira. Fonte: Arquivo familiar. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

Esta afabilidade percebe-se também na ampla variedade da sua coleção de música, que o perfila como uma pessoa capaz de apreciar música de muito diversos estilos e épocas, com o único filtro da beleza e a elaboração musical. A época em que viveu Jesus Ínsua foi a da plena ditadura franquista, que dominava todos os aspetos da sociedade.

Além do autodidatismo que sempre professou, os seus inícios musicais foram nalguma das orquestras de plectro do sindicato franquista Educación y Descanso, que vinham sendo agrupamentos pré-existentes ao golpe militar. Estas orquestras de guitarras tinham grande fama nas vilas e cidades, na época de antes da guerra, e agora eram reorganizadas pelo sistema franquista para o seu controle e o da população do lugar.

Obra de teatro em que participou Jesus Ínsua. Fonte: Arquivo familiar. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Obra de teatro em que participou Jesus Ínsua. Fonte: Arquivo familiar. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

Em Ortigueira era espetacular a quantidade de orquestras de plectro que havia no primeiro terço do século XX. Agrupamentos mais ou menos estáveis, formados como rusgas de Entrudo ou para a celebração das festas do Natal e quaisquer outras festas populares do ano, como em quase todas as vilas costeiras do Norte galego. De Pontedeume a Ribadeu, não havia lugar que não tivesse várias orquestras de cordofones. Boa prova são as fotos do pub Galaripos de Ortigueira, onde se apreciam orquestras de todas as épocas, orgulho desta tradição musical galega e das pessoas que a cultivaram ao longo dos tempos. Estes agrupamentos, que eram também escolas de música, deram a oportunidade de fazer música em grupo a muitas crianças.

A guitarra de Jesus Ínsua Yanes

A atividade dum músico é fazer música. E Jesus Ínsua dedicava-se a este labor em corpo e alma com as ferramentas de que dispunha, sem mais ambição que a de dar o melhor da sua sensibilidade e pensamento musical. Ele era um trabalhador, um operário da música. Possivelmente na década de 1940, comprou uma humilde guitarra no bazar ferrolano de Julio F. Couto, sucessor de Vicente Couto, onde além de artigos de viagem, ferragens e explosivos, também se vendiam instrumentos musicais.

Etiqueta da guitarra de Jesus Ínsua. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Etiqueta da guitarra de Jesus Ínsua. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

Com aquela guitarra chegou Jesus Ínsua a interpretar em concerto Torre Bermeja de Albéniz, seguramente no arranjo de Andrés Segóvia, e não achamos que a sua sensibilidade musical lhe permitisse fazer tal cousa sem uma guitarra que respondesse perfeitamente às necessidades dessa difícil peça. Este recital aconteceu em o 11 de outubro de 1953, no Teatro da Beneficência, em favor do lar de pessoas idosas em Ortigueira.

Rusga de entrudo, ca. 1930. Fonte: No pub Galaripos, em Ortigueira. © 2022 by Isabel Rei Samartim.Rusga de entrudo, ca. 1930. Fonte: No pub Galaripos, em Ortigueira. © 2022 by Isabel Rei Samartim.

Alonso Salgado informa que em 1949 Jesus Ínsua organizava o grupo Ortiga, junto com Juan José Bellón, Eduardo Rodriguez, Antonio Sanjurjo e José Peña Fustes. Em 1950, Jesus e Eduardo fundavam o grupo Viyaró, com Tonito Dieguez Vila. Tocou com Xico de Carinho em diversas ocasiões e com outros músicos e guitarristas de Ortigueira, como Carducho. Havia um tipo de atuação em que participavam estes grupos e a orquestra de plectro de Educación y Descanso, que se chamava o Fim de Festa, e era a parte final de uma representação de teatro que normalmente acabava com música.

A guitarra foi o instrumento principal de Jesus Ínsua até que sofreu, sem ainda ter os 30 anos de idade, um problema de saúde que lhe provocou uma parálise na mão esquerda. Mas este músico polifacético e bailador de claqué não parou a sua atividade artística. Em 1962 casou-se com Margarita Florinda Cal Prieto, mãe da atual herdeira Margarita Ínsua Cal, e a partir da sua recuperação física dedicou-se a tocar o teclado, só com a mão direita, em diversos grupos musicais.

A veia literária: cartas, relatos, poemas

A sensibilidade para a música de Jesus Ínsua era só uma parte da sua capacidade artística que abrangia, como já foi dito, a dança de claqué e, também, o teatro. A veia dramática, desenvolvida no seio da Falange, recalou nos seus textos, em que se vê uma intenção quase fílmica do relato. Jesus Ínsua escreve um conto durante o tempo de serviço militar com todos os ingredientes dum thriller de suspense: apresentação, desenvolvimento e surpresa no encerramento final. O mesmo acontece numa carta dirigida à sua mãe. No poema Divagaciones, escrito em castelhano e dedicado à esposa, Margarita, a modernidade poética deixava o seu efeito:

  • Primavera
  • flor del año,
  • cristal
  • sin empaño,
  • amor
  • sin regaño,
  • luchar
  • por la vida,
  • vivir
  • con la lucha.

A coleção de partituras do século XX

Pieza enlazada

A coleção de Jesus Ínsua acolhe o interessante conjunto do século XIX, que foi analisado no artigo anterior, e também numerosas obras de várias décadas do século XX que nos indicam o tipo de peças tocadas e ouvidas em Ortigueira naquela altura. Neste artigo trataremos especialmente a música moderna conservada neste fundo.

As partituras modernas do fundo foram publicadas nas décadas centrais do século XX, a maior parte delas entre 1940 e 1960. Estas partituras estão escritas, sobretudo, para piano e voz, havendo também música para voz, guitarra, grupo de plectro, violino e sopro (metal). Sabemos por uma foto familiar que Jesus Ínsua também tocava um pouco a gaita. O guitarrista ortegano, além de ser considerado um virtuoso, fazia arranjos para as diversas formações musicais que integrou. Como marca de época, ainda que no seu fundo se conservam muitas melodias soltas, poucas são de música galega.

Trio Matamoros, Cuba. © Dominio público.Trio Matamoros, Cuba. © Dominio público.

O mais interessante são as numerosas canções das décadas de 40 e 50 que desenham a constelação musical de autores, melodias e intérpretes que povoavam os repertórios das orquestras modernas galegas nessa altura. Eram os tempos de António Machin, do Trio Matamoros, das canções napolitanas de Pavarotti, de Rocio Durcal. Os géneros mais frequentes vinham da América: o fox-trot, o swing, o slow, o samba, o choro, o som, a rumba, e também de produção peninsular: o bolero, o fado, o passodoble. Os ritmos destas danças eram os protagonistas em qualquer festa amenizada com agrupamentos onde se misturavam guitarras de madeira com saxofones e baterias. Depois progressivamente começou a entrar a guitarra eléctrica (Rei-Samartim, 2020b).

Pouco nos dizem hoje os nomes de Francisco Codoñer, Paul Durand, Demetrio Amigo (A. Malillos), Roberto Mendoza, Procopio Jiménez, ou o mestre Marino García, porém eram todos autores de canções da época, que toda a gente esperava ouvir tocadas no seu grupo de preferência. Estes grupos chamavam-se “orquestras”, e por esse nome ainda são hoje conhecidos, ainda que em muitos casos eram singelamente grupos de câmara, e não propriamente orquestras.

Conhecemos mais outros autores, como Tomás Bretón, Jacinto Guerrero e Ernesto Lecuona, que também eram grandes êxitos do momento. No fundo de Jesus Ínsua há igualmente música de Beethoven, Schubert, Mendelssohn, Iradier, Albéniz, Granados e Manuel de Falla, que não precisam de apresentações.

As partituras dividem-se em manuscritas, uma pequena parte do fundo, e publicadas, a maior parte. Destas últimas há uma obra para guitarra, um arranjo de Ecos de la parranda, de Enrique Granados, realizado por S. García, que pensamos seja o guitarrista valenciano Salvador García, um dos discípulos de Tárrega. E duas para grupo de plectro: a Dança n.º 5 de Granados, no arranjo de Daniel Fortea, de que só está a parte para bandurra, e o passodoble Camino de rosas, de José Franco, arranjado também por Daniel Fortea, de que se conservam as partes da bandurra 1ª e alaúdes 1º e 2º. Estas obras fariam parte do repertório da orquestra de plectro em que tocava Jesus Ínsua.

Há também no fundo um exemplar íntegro do Boletim da Biblioteca Fortea de 1950 e várias partituras que levam o carimbo da loja de música Puig y Ramos, da Corunha, que foram os sucessores de Canuto Berea. Igualmente aparecem as casas de música Unión Musical Española (Madrid, Castela), Erviti (Bilbau, País Basco), Iberia Musical (Barcelona, Catalunha), que é a atual Editorial Boileau, e Ildefonso Alier (Barcelona, Catalunha – Madrid, Castela). E também há partituras editadas em Buenos Aires (Argentina), que passaram por diversas lojas peninsulares, e outras publicadas em Milão (Itália), além de numerosas edições de autor, onde se vê que as peças saíam ao público graças à inversão económica dos seus criadores.

Na parte manuscrita do fundo conflui música escrita por diferentes pessoas, sendo abundante a caligrafia do próprio Jesus Ínsua, especialmente nas numerosas peças transcritas de ouvido, a maior parte delas inacabadas, ou só transcritas na sua primeira parte. Assim, o guitarrista ortegano passava o tempo a rascunhar as melodias do momento para as usar nos seus grupos, sendo suficiente ter um guião dos primeiros compassos para depois continuar tocando até ao final. Valsas, marchas, Yo te amé porque creía, Palabra de honor, Adiós a Cuba, Sombrero en mano, Chiquita, Eres tú, Baião, Maria Marì, eram canções e danças bem conhecidas na época que figuram na coleção manuscrita junto de mais música para grupos de plectro, e as composições próprias de Jesus Ínsua como En el silencio de mi refugio. Nocturno nº 1, para duas guitarras.

Conclusão

Em definitivo, o amplo e diverso fundo de música de Jesus Ínsua Yanes descobre uma parte inédita da história da guitarra na Galiza durante o século XIX, e nos ilustra sobre a evolução da música para guitarra durante o século XX, incluindo aqui as guitarras acústica e eléctrica, sem as quais não poderia entender-se o acontecido nos últimos cem anos de música galega.

Referências bibliográficas

  1. Alonso Salgado, Luís (1987). Ortigueira. Crónica gráfica de la Villa Condal. Corunha: Deputação provincial.
  2. Alonso Salgado, Luís (1994). Jesusito Insua. La Voz de Ortigueira, 16 de dezembro, p 7.
  3. Julio F. Couto (Ferrol): https://sites.google.com/site/ferrolantiguo/comercios-en-la-calle-real
  4. Rei-Samartim, Isabel (2020a). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela.
  5. Rei-Samartim, Isabel (2020b). "Guitarristas de Betanços. Breve história da guitarra brigantina". Anuario Brigantino, 43, pp 549-576.
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