Recensiones bibliográficas
Carta aberta ao professor Boaventura de Sousa Santos
Isabel Rei Samartim

Prezado professor:
A que subscreve não é estudante de Ciências Políticas, nem está diplomada em Filologia alguma. Unicamente tem feito uma carreira de Música, que a mantém feliz, um doutoramento na mesma área e desfruta duma tendência à leitura e à escritura, além dum amor pelas artes, que fica fora de toda consideração.
Esta carta aberta é dirigida ao senhor por motivos que logo serão explicados. A sua autora acumula um velho, mas ainda crescente, interesse pelos assuntos políticos que rodeiam a vida na Galiza, especialmente os relativos à questão linguística e à nacional, que vão entrelaçadas e são dous piares fundamentais para entender o que acontece neste belo país, cheio de patifes e também de boa gente.
Quando digo “país” estou a referir-me à Galiza, não ao Reino da Espanha. O senhor deve ter em conta isto, porque é fundamental para entender tudo o que tenciono explicar nesta carta.
Em 2014 um colega e eu fomos requeridos pelo Círculo de Podemos Vigo Centro, que era um dos vários Círculos, ou associações da vizinhança, que se tinham formado naquela cidade dentro do forte movimento político que o Podemos estava a impulsar naquele momento por todo o Reino da Espanha. As entusiastas usuárias daquele Círculo solicitaram-nos uma reunião explicativa sobre a Lei Paz Andrade que vinha de ser aprovada em março de 2014, por unanimidade de tod@s @s deputad@s dos três grupos parlamentares existentes na altura no Parlamento galego (BNG, PSdG, PPdG).
Caso o senhor não saiba, a Lei Paz Andrade, cujo nome completo é Lei 1/2014, de 24 de março, para o aproveitamento da língua portuguesa e vínculos com a lusofonia, visa a aprendizagem da língua portuguesa na Galiza para o seu uso na administração, nos relacionamentos mediáticos e no ensino público. Tem o texto completo nas referências no final da carta. A lei fora apresentada dous anos antes como uma Iniciativa Legislativa Popular (AGLP, 2012) que reuniu mais de 17.000 assinaturas, em cuja consecução eu e outr@s colegas estivemos envolvidas. É devido lembrar que a espetacular unanimidade foi conseguida após imensas emendas duns e doutros grupos, que não aceitaram o texto inicial, e mesmo o deformaram de modo a ficar quase irreconhecível. Mas, contudo, a lei diz o que diz. E o reintegracionismo galego (Wikipédia) tomou o facto como o que foi, um triunfo da gente.
Então, em novembro de 2014 eu desloquei-me até Vigo, saindo de Compostela que é a cidade onde moro, para me juntar ao meu colega, o empresário galego Xosé Carlos Morell, hoje a morar em Mós. E fomos ao Café De catro a catro onde realizamos a explicação da lei para quatro ou cinco entusiastas membros do Círculo de Vigo Centro. A explicação foi entendida, apontamentos foram tomados e, depois, algumas das pessoas ali presentes progrediram no partido, ganharam representação e tiveram algum posto de responsabilidade.
Eu própria fui proposta pelo na altura coordenador do Círculo, José Manuel Prieto, para integrar uma lista das eleições primárias que se realizou no mês de dezembro. Bem no início do ano a seguir conheceram-se os resultados e ganhou a lista de Prieto (Faro de Vigo, 2015). Eu nunca mais soube de nada. É certo que o meu envolvimento era parcial, pois eu não fazia parte da militância do partido, nem me tinha interessado por conhecer melhor o processo, nem tinha feito campanha. Para mim era suficiente que a Lei Paz Andrade tivesse causado aquele interesse até ao ponto de me convidarem a fazer parte das listas, cousa que não me tinha acontecido com nenhum outro partido.
Porém, está bom de ver que aqueles esforços não cumpriram o objetivo de espalhar a consciência linguística no Podemos, que sempre foi “Podemos Galicia”, nunca Galiza, nome correto do país (Santalha, 2008). Um passo parecia dar-se anos mais tarde, no programa eleitoral da coligação galega En Común-Podemos para as eleições estatais de 2019, em que apareciam dous pontos dedicados à situação linguística e ao relacionamento internacional necessário para a Galiza (Rei-Samartim, 2019a). Depois, em 26 de maio, ainda tivemos eleições municipais com regressão nuns casos, e progressão noutros, dos pontos linguísticos e internacionalistas dos programas, que analisei publicamente (Rei-Samartim, 2019b). Finalmente, para as segundas eleições estatais do ano 2019, em que houve muita borralheira mediática, mais partidos de âmbito galego incluíam vários pontos interessantes sobre a língua na Galiza e a sua internacionalidade (Rei-Samartim, 2019c).
Neste ponto o Professor já poderá intuir o motivo desta carta aberta. Esta incansável leitora e seguidora sua acabou de ler o capítulo dedicado à Espanha no seu recente livro intitulado Esquerdas do mundo, uni-vos!* capítulo número 7 cujo título completo é: “Espanha: a fratura da identidade nacional”.
Nesse capítulo, o Professor explica muito bem e em poucas palavras o que aconteceu com o Podemos a respeito da sensibilidade nacional catalã que desde 2010 estava ganhando peso na atualidade política do Reino. Fiquei especialmente cativada por estes parágrafos:
As esquerdas e a identidade nacional
Porque é que a crise da Catalunha pode ser particularmente negativa para o Podemos? Se nos restringirmos à Catalunha, os danos não parecem duradouros. A posição da aliança em que se integrava o Podemos era a posição aparentemente moderada do fortalecimento da autonomia pelas vias legais e constitucionais. Mas seria essa a posição das bases catalãs do partido? Estariam todas com o partido quando este afirmava o direito a decidir e ao mesmo tempo insistia que a independência não era uma boa solução nem para a Catalunha nem para Espanha? Defender o direito a decidir não implicaria o dever de aceitar o que fosse decidido? Porquê insistir tanto na ilegalidade do referendo quando a maioria dos catalães defendia o direito incondicional de decidir, ainda que estivessem divididos quase pela metade sobre o objetivo da independência?
É evidente que o senhor não quer realizar uma crítica excessivamente dura à posição do Podemos em 2017, hora em que o movimento nacional catalão eclode e reúne as suas maiores forças, entre o impressionante impulso popular e as elites políticas, esquerda e direita catalanistas, completamente viradas para a questão radical da independência. Eu também concordo em que não devemos ser dur@s nas críticas, em especial com aquelas opções de esquerda que tentam ser valentes no arcaico Reino da Espanha. O Podemos é uma dessas opções que, além do mais, leva desde 2015 a sofrer os bombardeamentos constantes do deep state que manda no Estado-Reino.
Mas, sendo absolutamente respeitosa com a militância espanhola do Podemos, e com @s dirigentes que realizam um ótimo trabalho como revulsivo do Regime conservador, queria eu tentar responder alguma das perguntas que o Professor coloca no seu texto. E esse é o motivo desta carta aberta.
O Podemos não conseguiu entender nem, portanto, assumir até às últimas consequências a realidade das diferentes nações. A expressão “nação de nações”, enunciada nos meios espanhóis pela professora galega Carolina Bescansa, mascarava e ocultava o significado das nações em plural. A “nação de” significa a legitimidade do Estado único, precisamente aquilo que as “nações” denunciam só pelo mero facto de elas existirem. Se há nações, então não há nação. Podemos sempre quis manter a unidade do Reino da Espanha, a “nação de”. Naturalmente, partido e militância prefeririam manter a unidade da República da Espanha. Mas, como o Professor bem sabe, a intenção de “manter a unidade” do Estado é a mesma, seja qual for a forma desse Estado.
Isso colide frontalmente com a ideia de independência que o povo catalão defendeu com unhas e dentes ao longo de já vão lá muitos anos. As abordagens teóricas sobre este delicado assunto que a esquerda espanhola propiciou no seu dia, hoje abafadas como rescaldos da batalha de 2017, nunca incluíram a hipótese de buscar soluções diferentes à da unidade do Estado, para que cada uma das nações pudesse conseguir a fórmula política mais favorável aos seus interesses económicos, sociais, culturais e vitais.
De modo que a situação bélica no primeiro de outubro de 2017 na Catalunha, programada pela direita reacionária espanhola, não diferenciou substancialmente Podemos dos outros partidos de âmbito estatal chamados de “constitucionalistas” porque defendiam a aplicação do artigo 155. Mas, esses tais de partidos “constitucionalistas” cagam pela Constituição Espanhola sempre que a sua devida aplicação lhes impede manter os privilégios. Sobre isso, o artigo 155 dava-lhes confiança e continuidade monárquica. Na realidade, era o Podemos o único partido constitucionalista dentre eles, que tanto visava aplicar o artigo 47 do direito à vivenda digna, quanto se propunha um tipo diferente de aplicação do artigo 155, igualmente em favor do interesse geral do Reino da Espanha. E, naturalmente, o Podemos defendia o resto de artigos como o número 3, em que se explicita qual língua das existentes no Reino é a privilegiada, e quais outras línguas não partilham as mesmas condições de direitos e deveres.
O dilema é se a independência das nações vai contra o interesse geral, ou somente vai contra o interesse concreto dalgumas elites do Reino da Espanha.
O senhor Professor, a esta altura, já pensaria que está a dar ouvidos a uma galega cujo país não se tem manifestado em favor da independência de forma tão contundente quanto a Catalunha. Mas o senhor conhece Xosé Manuel Beiras, a quem cita quando trata a posição da esquerda espanhola perante o nacionalismo das nações sem Estado próprio (Santos, 2019, p. 152):
No que respeita ao nacionalismo, este foi nos contextos coloniais extra-europeus um objetivo politicamente muito mais complexo. Foi a bandeira dos povos oprimidos entre os quais havia obviamente diferenças de classe, de etnia e outras. Daí que se tenha distinguido entre o nacionalismo dos fracos ou oprimidos e o nacionalismo dos fortes ou opressores.
Isso dá-me alguma esperança de que o Professor consiga perceber aonde quero chegar nesta já longa missiva.
Depois do fracasso nas eleições primárias em 2015, eu decidi que dalgum modo havia que dar a conhecer à dirigência do Podemos as explicações sobre a realidade de todas as nações que, sem serem consultadas, integram o Reino da Espanha. Hesitei entre se fazer isso publicamente, via artigos de opinião, ou em privado, poupando as possíveis consequências negativas para o partido. Então, cheia de esperança publiquei algum artigo de opinião (Rei-Samartim, 2016), e comecei a enviar longas cartas em privado a um dos académicos fundadores do partido.
Nessas longas cartas eu explicava motivos, textos, exemplos, metáforas, piadas, ilustrações, mapas e todo o tipo de manifestações em que se demonstrava a existência hoje, no século XXI, das diferentes e desiguais nações que conformam o ramalhete da monarquia bourbónica. Informei muito também sobre Portugal, sobre o reintegracionismo galego, sobre as mentiras da História da Espanha e sobre tudo quanto poderia servir ao propósito de revelar uma verdade não vista desde a “unidade do Estado”. Uma verdade que condicionaria os processos democráticos e a própria fórmula desse Estado.
Tudo foi em vão. Os efeitos do meu trabalho foram irrisórios, irrelevantes, e só serviram para que o meu espanhol interlocutor desenvolvesse ainda mais a teoria da conveniência da “unidade do Estado”. Teoria que favorece a desunião das esquerdas dentro do Reino. Assim, os meus esforços estavam dando o resultado contrário ao esperado. Foi por isso que depois das segundas eleições em 2019 abandonei a empresa e deixei que os sulcos da patética História da Espanha conduzissem as águas que a esquerda espanhola pretendia renovar.
Foram muitos anos de tentativa. Tenho certeza de que não fui eu sozinha que quis explicar a questão nacional ao Podemos. Algumas pessoas escreveram livros inteiros dedicados à questão. Na Galiza o tema da nacionalidade sempre foi visto como algo fundamental em que o Podemos não acabava de entrar. E eu, por falar com eles, estava a ser vista como uma traidora espanholista. Sempre quando ficamos no meio, o que implica não se acomodar numa posição predeterminada, apanhamos as pancadas. Mas não era só uma questão de oposição dos partidos nacionalistas galegos. Era algo que a gente sentia. Era claro que o Podemos não estava no tema, que não percebia, que não fazia a conexão.
Para os meus botões diria que a castradora mentira do Reino da Espanha incapacitou as melhores mentes da esquerda espanhola para não lhes deixar ver o que é preciso que vejam. Que os nacionalismos das nações ibéricas sem Estado próprio, o que o Professor denomina “nacionalismo dos fracos”, são movimentos de esquerda tão fortes que no caso da Catalunha até arrastaram alguns partidos de direita. E que na Galiza não arrastam partidos de direita porque aqui a direita não é galeguista, mas franquista. Aqui o cainismo está presente em todos os momentos da nossa vida, traço indiscutível do sofrimento histórico que acumulamos tempo após tempo.
É possível que os meus reiterados fracassos me tenham induzido a conformar um grave pessimismo, mistura de impotência e superioridade. Impotência, com certeza, e bem demonstrada. E superioridade, sim, porque nós conseguimos ver algo que espanhóis não veem. Mas estou esperançada porque o Professor conseguiu ver algo e mesmo chegou a escrevê-lo no seu livro de 2019. É por aí que o pensamento internacional deve continuar para que na Galiza haja, algum dia, um movimento de libertação nacional da força do catalão e aperfeiçoado com a compreensão de todas as outras nações ibéricas, incluído Portugal. E então, não nos importarão as pancadas se ainda ficarem “piolins” comandados pelos sátrapas do Reino.
As esquerdas devem se entender. Esquerdas do mundo, uni-vos!, perante a crescente internacional do ódio e o capitalismo. Para isso, a esquerda espanhola deve demonstrar que sabe ir além duma reforma do Estado único. Deve compreender e apoiar os movimentos de libertação nacional das nações hoje integradas no Reino da Espanha. E, no bem-estar de tod@s, deverá trabalhar para recuperar e construir a sua própria nação castelhana sem mais pretensões imperialistas.
Só assim as esquerdas nacionalistas das nações ibéricas sem Estado próprio abandonarão a ideia de que nada se pode aguardar da esquerda espanhola. E todos os Estados independentes resultantes do anti-imperialismo e da confiança entre iguais poderão criar laços entre eles da maneira que acharem mais virtuosa. Estou a pensar na já reconhecida eurorregião Galiza-Norte de Portugal. E ainda mais, uma vez em pé de igualdade todas as nações, poderia pensar-se algum tipo de fórmula supra estatal para a coordenação dos Estados Ibéricos, em que estaria a República portuguesa, nos organismos europeus e mundiais.
Mas tem de ser em pé de igualdade.
Referências que acompanham esta carta aberta
- AGLP. (2012). Apresentam Iniciativa Legislativa Popular “Paz-Andrade” para promover a língua portuguesa e os vínculos com a Lusofonia. Blog AGLP: 16 de maio.
- DOG. (2014). Lei 1/2014, de 24 de março, para o aproveitamento da língua portuguesa e vínculos com a lusofonia. Número 68, p. 15608.
- Faro de Vigo. (2015). José Manuel Prieto, secretario general de Podemos Vigo. 2 de janeiro.
- Rei-Samartim, Isabel. (2016). Centenários do presente. Praza Pública, 1 de junho.
- Rei-Samartim, Isabel. (2019a). 28 de abril na Espanha. Um programa eleitoral. Praza Pública, 16 de abril.
- Rei-Samartim, Isabel. (2019b). 26M em Compostela. Praza Pública, 21 de maio.
- Rei-Samartim, Isabel. (2019c). A língua portuguesa nas eleições espanholas. Portal Galego da Língua, 7 de novembro.
- Santalha, Martinho Montero. (2008). O nome da Galiza. Boletim da Academia Galega da Língua Portuguesa, 1, pp. 11-34.
- Santos, Boaventura de Sousa. (2019). Esquerdas do mundo, uni-vos!. Coimbra: Almedina.
- Wikipédia. (2022). Reintegracionismo. 17 de fevereiro.
Isabel Rei Samartim
Guitarrista e professora no Conservatório Profissional de Música de Santiago de Compostela (Galiza)
Doutora em História da Arte pela Universidade de Santiago de Compostela (USC)
Professora do Departamento de Música da Universidade do Minho (entre setembro 2020 e fevereiro 2021)
Académica fundadora da Academia Galega da Língua Portuguesa (AGLP)
Patroa da Fundação AGLP
Sócia da Associação Internacional Colóquios da Lusofonia (AICL)
Sócia do Museu do Povo Galego (MPG)
Integrante da Irmandade da Música Galega (IMG)
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