Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaO fundo musical do Instituto Teológico Compostelano
Isabel Rei Samartim

Com agradecimento para o padre D. Benito e a bibliotecária D.ª Isabel Crespo.
Há duas semanas fui visitar a biblioteca do Instituto Teológico Compostelano (ITC), situada no edifício do Seminário Maior, dentro do mosteiro de São Martinho Pinário, no centro antigo de Compostela. Fui atendida com toda amabilidade, e em três manhãs passei pela vista, às vezes rápida, às vezes mais demoradamente, umas quinhentas partituras conservadas em 24 arquivadores. As pausas demoradas para consultas rápidas na rede, por mor das informações que havia nos documentos, dediquei-as às partituras diretamente a ver com a guitarra, também a intérpretes da cidade e às autoras e autores menos conhecidos que iam sendo achados.
Depois tive acesso ao catálogo elaborado pelo violinista Francisco Javier Fernandez Places e publicado em 2009. Foi muito útil conhecer o que este colega viu durante a elaboração do seu trabalho, que não coincide com o que eu pude observar atualmente no fundo. Para começar, ele catalogou 721 obras. Algumas delas eu não vi na minha recente visita, outras que eu vi, não figuram no catálogo. O certo é que as partituras estão sem marcar e há inteira liberdade para entrar e sair com o material, de modo que as partituras que faltam podem ter sido removidas do fundo e as que estão agora, mas não estavam em 2009, podem ter sido devolvidas a ele sem deixar rasto documental.
Isto indica uma instabilidade que os responsáveis do ITC deveriam resolver, pois o fundo é interessante por três motivos: para a reconstrução da história musical do Seminário, para a ampliação dos dados sobre músicos e intérpretes da cidade de Compostela dos séculos XIX e XX, e para o estudo da música sacra na Galiza.
O primeiro e segundo objetivos são o foco deste artigo, em que passo a descrever brevemente o que eu achei e, depois, a dar umas sucintas notas sobre a música para guitarra, e alguns e algumas autoras e intérpretes da cidade.
Descrição sumária do atual fundo do ITC. Música eclesiástica
Passo a fazer uma descrição sumária do que eu vi e que, segundo o dicionário, será breve, resumida e essencial.
Dentro do fundo há muita música religiosa dos séculos XIX e XX, quase toda vocal para 2, 3, 4 e 5 vozes, iguais, masculinas e mistas. Normalmente com acompanhamento de órgão, que pode ser ampliado a violinos, fagotes e contrabaixos. Os géneros são missas, motetes, madrigais, canto gregoriano transcrito à notação moderna, e outra música eclesiástica de autores bem conhecidos, escrita por diferentes mãos ou publicada em editoriais religiosas. Estes géneros são os mais abundantes no fundo. Isto coincide com o catalogado em 2009.
Entre os autores ressalto a presença de música de padres bascos e navarros. Estão os Responsórios de Nemésio
Também se conserva a obra O Salutaris do compositor e pianista viguês Francisco
Música não eclesiástica
Quanto à música não eclesiástica, que o fundo classifica como ‘profana’, há muita música para quarteto clássico de corda friccionada. Partituras editadas quase sempre na Itália do século XIX, em papel de grande formato, que conservam a tinta como no primeiro dia e não pesam nada, ideais para @s intérpretes levarem consigo com facilidade. São sobretudo os arranjos de Vincenzo Gambaro (1772?-1828), Pietro Tonassi (1801-1877) e Ernesto Cavallini (1807-1874) de óperas italianas de Bellini (Norma, I puritani, Il pirata, La straniera, I Capuleti e i Montecchi), de Rossini (L’italiana in Algeri, La donna del lago, Edoardo e Cristina, La gazza ladra, Mosè in Egitto, Maometto II, Tancredi, Semiramide, La cenerentola) e do também guitarrista Carl Maria von Weber (Der Freischütz [Robin des Bois]). No catálogo figuram ainda mais óperas.
Estas partituras poderiam pertencer a algum dos grupos de câmara que no século XIX tocavam na cidade e cujos membros tinham alguma ligação com o Seminário ou com a Catedral, como podiam ser o dos irmãos Courtier, ou o de Gomez Veiga “Pepe Curros”. Sobre isto, uma das obras de Victoria figura como aprovada por Santiago Tafall, possivelmente na sua função como censor do Motu Proprio. Tafall era colaborador desses grupos, de quem também o fundo conserva um Hino a São Francisco de Assis, escrito para voz e órgão.
Já foi advertida a Sinfonia para grupo de câmara de José Courtier presente no fundo, está escrita para violinos 1º, 2º e 3º, contrabaixo e clarinete. Pode ler-se uma descrição da obra em Cancela Montes (2013).
Há também nesses arquivadores uma variedade de canções com acompanhamento de piano, vários catálogos de lojas de música, métodos de solfejo e piano de pessoas da cidade, obras manuscritas para diversos instrumentos e apresentadas a concursos, partituras do Magasin des Demoiselles entre os anos de 1869-1870, várias monografias de temas diversos, algumas delas focadas numa visão aberta e franciscana da Igreja, outras referentes à língua galega como os artigos de José Martinho Montero Santalha, antigo aluno do Seminário de Mondonhedo, professor da Universidade de Vigo e primeiro presidente da Academia Galega da Língua Portuguesa (2008-2019).
Entre as pequenas joias está uma valsa para piano intitulada Mondariz, de P. Rodrigo. Pouco se sabe deste autor, poderia ser o P. Rodrigo Falces que publicava com o editor Faustino Fuentes, cujo catálogo figura no fundo. E o impecável manuscrito doutra valsa, esta do Maestro
Também há no fundo um conjunto de peças por Isaac Strauss (1806-1888), maestro de salão da corte francesa, sobre temas da ópera cómica de Hervé (pseudónimo de Louis-Auguste Florimond Ronger, 1825-1892). Este conjunto de danças tem o mesmo formato que outro conservado no Fundo Valladares, nas Pastas Vermelhas, no fólio 2r: Pantalon, Eté, Poule, Pastourelle, com a diferença de haver um Finale em Strauss/Hervé. As peças não coincidem em melodia, tonalidade ou compasso, mas no caso anónimo do Fundo Valladares, parece confirmar-se a pertença ao género da ópera cómica.
De resto, o fundo possui exemplares em bom estado de sete volumes de música para órgão publicados por Pedrell: Hispaniae schola musica sacra, uma coleção da revista Música Sacro-Hispana desde 1908 a 1917, e inúmeras partes das obras anteditas, manuscritas e copiadas, uma e outra vez, para uso dos estudantes do Seminário Maior, com anotações, papeis usados, recopiados e guardados após a sua utilização.
Compositoras e intérpretes no fundo
O fundo alberga música de coleções particulares de músicos da cidade. Pertencente a alguma dessas coleções é a obra duma mulher compositora, a cantora estadunidense Anita Owen (1874-1932), cuja canção Daisies won’t tell (1908) figura copiada por Manuel Estevez. Esta canção era continuação do grande sucesso da cantora publicado em 1894, a canção Sweet bunch of daisies, que vendeu 1 milhão de cópias (Wikipédia).
Há também vários volumes de música para piano, encadernados em Compostela e Vigo, com nomes de mulheres escritos por elas mesmas, ao parecer, pois nalguns casos aparecem copiados várias vezes, como num ensaio de assinatura. Os nomes destas pianistas são Benigna e Carmen Carrillo Rodriguez, Josefina Rua Tarrio, Asuncion Buhigas, Maria Filgueira Suarez, Nicolasa e Maria Vilarelle Mateo, todas pertencentes a famílias acomodadas. Também aparece um homem, German Muelas, que pode ser um estudante de farmácia, e um endereço: “Hotel La Perla”, este era um antigo hotel compostelano situado num dos edifícios ainda existentes perto da Porta Fageira, onde se realizavam concertos. Esta anotação tem uma data: 23 de abril de 1916.
A maior parte destas mulheres eram alunas pianistas da Sociedade Económica, como Benigna e Carmen Carrillo, companheiras de Josefa e Pilar Landeira Sanchez, cujos métodos de piano chegaram à biblioteca através dalgum professor em comum. Destaca o nome de José Neira Villamil, já citado neste artigo, sócio da Económica desde 1894, casado com Petra Arias de la Maza (La Concordia, 1902), cujas filhas Petra (ou Pedra), Maria Amélia e Manuela Neira Arias aparecem também em diversos lugares do fundo como donas e dedicatárias dalgumas partituras, entre elas as compostas por António Garcia Gimenez.
E também teria a ver a Academia Gelmirez, escola privada para a alta sociedade compostelana, que abria em 1924 situada no número 38 da rua do Vilar (El Compostelano, 1924), escola com que algumas destas mulheres tinham ligação. Através do professorado, a Academia Gelmirez estava ligada tanto à Catedral quanto ao Seminário Maior. Do mesmo modo, estas mulheres coincidiam em atos com Carmen Valverde, a pianista e filha do compositor e regente do coro do Seminário, Manuel Valverde. Os eventos programados evidenciavam o relacionamento social entre estas famílias. Vemos aqui reafirmado, e mesmo ampliado, o que Maria Garcia Caballero explicava em 2008 no seu estudo sobre a vida musical em Compostela no final do século XIX.
Além de partituras antigas em perfeito estado e uma boa coleção de música religiosa, o fundo musical do Seminário Maior oferece pistas para o estudo das mulheres intérpretes de música em Compostela.
Música para guitarra ou ligada a guitarristas no fundo ITC
É surpreendente as poucas partituras que se conservam para guitarra e para orquestra de plectro neste fundo, sabendo como sabemos que a atividade guitarrística era intensa. A própria Garcia Caballero (2008, p. 357) regista a orquestra de plectro do Seminário impulsada por Santiago Tafall. Contudo, conserva-se a partitura do “Pasacalle de los Chisperos y Guardias de Corps” da zarzuela La calesera, composta pelo andaluz Francisco Alonso com muito sabor espanhol e estreada em 1925, onde a orquestra de corda friccionada toca com uma orquestra de plectro durante toda a obra.
Cándido Beiro, de Betanços e cego, organista na Corunha e depois em São Francisco de Compostela, era um dos três professores de guitarra que Carolina Queipo mencionava em 2007 (Rei-Samartim, 2020, p. 349). Neste fundo acha-se uma obra dele intitulada Gozos a los Dolores de la Virgen, para 4 vozes masculinas e harmónio.
Entre as várias obras conservadas, mais das que figuram no catálogo de 2009, compostas por António Garcia Gimenez está a valsa intitulada Las panderas, para piano e dedicada a José Neira Villamil, que segundo figura em nota na partitura foi estreada em 1914 pela Tuna do Seminário. Entendemos que essa tuna seja a orquestra de plectro existente na altura.
Além disso, figuram no catálogo de 2009 duas obras de Ernest-Louise Patierno (18..-1929), para bandolim e piano, ambas as duas publicadas por Henri Lemoine em Paris, e intituladas Bolero-Mazurka e Libellule. Estas obras não foram vistas por mim no fundo há duas semanas.
As que sim estavam eram duas peças do francês Laurent de Rillé (1824-1915), La retreta e Los pescadores. Da primeira temos notícia anterior por termos estudado o virtuoso guitarrista limião Eulógio Gallego Martinez, quem realizou arranjos destas peças e as tocou com muito sucesso em diversas veladas em Compostela, dentro da sua atividade como seminarista, integrante do Círculo Católico e mão de confiança do pianista e compositor Manuel Valverde, regente do orfeão do Seminário (Rei-Samartim, 2017).
Também se acham neste fundo, escritas para coro de tiples, tenores e baixos, três Cantigas de Afonso O Sábio, musicadas por Antonio José
Música galega no Seminário Maior
No fundo tem-se notícia de bastantes canções galegas, quase sempre anotadas para voz e piano. Mas nem sempre se conserva a música. Uma maneira de saber que possivelmente existiram é a presença de diversas listagens de obras com música galega que figuram entre as partituras e que não temos espaço agora para analisar. Aqui deixo um resumo do achado:
Na minha recente visita vi obras de autores galegos que não figuram no Catálogo de 2009: 1) Coitas e vágoas, de Angel
Do pianista e regente compostelano, que chegou a dirigir a Banda Municipal (Cancela, 2016, pp. 309-313), António Garcia Gimenez, achei mais 10 obras que não figuram no catálogo: 1) Las panderas, valsa para piano estreada em 1914 pela Tuna [orquestra de plectro] do Seminário. 2) Fado fácil, em Dó M, para piano. 3) Fado de Santa Cruz, em Dó m, para piano. 4) One Step para piano, dedicada a Maria Amélia Neira Árias. 5) Minueto em Ré m para piano, dedicada a Pepita Neira Árias. 6) Vals, em Mi m e M para piano, dedicada a Manuelita Neira Árias. 7) Bendita sea tu pureza, canção para voz e piano, dedicada a Manuelita Neira Árias. 8) Reserva a solo de tiple, para voz e órgão. 9) Soñando, valsa lenta para piano. E 10) Cópia manuscrita de Ay, ay, ay, canción criolla cantada por el tenor Tito
Para finalizar, são bastante numerosas as obras com intervenção dalgum tipo (arranjo, cópia) realizadas por Manuel Estevez, todas elas dariam para reconstruir a atividade musical deste mestre no Seminário Maior. Assim, convocamos às instituições implicadas a levar a sério a ordenação, digitalização, recatalogação do fundo, e ativar medidas de segurança necessárias para cuidar deste valioso património musical.
Referências bibliográficas
- Cancela Montes, Beatriz. (2016). La Banda Municipal de Santiago. Música en las compostelanas rúas desde 1848. Compostela: Andavira Editora/Consorcio de Santiago.
- Cancela Montes, Beatriz e Alberto. (2013). La saga Courtier en Galicia. Compostela: Alvarellos Editora.
- El Compostelano. (1924). Noticias. Compostela: 16 de outubro, p. 2.
- Garcia Caballero, Maria. (2008). La vida musical em Santiago a finales del siglo XIX. Compostela: Alvarellos Editora.
- Fernández Places, Francisco Javier. (2009). La música en el Seminario de Santiago. Compostela: Alvarellos Editora - Consorcio de Santiago.
- La Concordia. (1902). Al menudeo. Vigo: 22 de abril, p. 2
- Queipo Gutiérrez, C. (2007). La ópera italiana y la música para guitarra decimonónica de un fondo desconocido coruñés. Manuel-Reyes García Hurtado. (Coord. e ed.). El futuro de las Humanidades (103-110). Betanços: Imprenta Lugami.
- Rei-Samartim, Isabel. (2017). «O guitarrista limião EULOGIO GALLEGO MARTÍNEZ (Ginzo de Límia, 02-09-1880 – ?)». Blog Historia de Xinzo, por Edelmiro Martinez Cerredelo.
- Rei-Samartim, Isabel. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela.
- Wikipédia. Anita Owen. (25/12/2022).
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