Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

Guitarristas da Galiza na emigração (1)

Isabel Rei Samartim
jueves, 4 de abril de 2024
Escudo do Centro Galego da Havana, 1879 © Dominio público / Wikipedia Escudo do Centro Galego da Havana, 1879 © Dominio público / Wikipedia
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Desde o fim da Primeira República e o início da Restauração canovista no refundado Reino da Espanha, o gotejo de artistas galegos que emigraram à América Latina foi constante. A reafirmação da Espanha significava a emigração galega. Os melhores valores musicais acabaram em Cuba, Uruguai, Argentina ou Brasil. Boa parte deles e delas eram guitarristas, como Júlio Mirelis e Adolfo Berges (Brasil), Gabriel Bárcia (América), Manuel Garcia (Argentina), Vicente Franco, Eulógio Gallego Martinez, José Fernandez Vide e José Castro Gonzalez Chané (Cuba), João Parga Bahamonde (Cuba e Málaga). E também Paz Armesto de Quiroga (Barcelona) e os violeiros Francisco Gonzalez (Madrid), Francisco Nuñez, Daniel Lago, Pablo Lopez, José Fernandez e Manuel Dominguez Cambra (Argentina), de quem temos falado no seu dia nesta mesma secção.

Os Centros Galegos

É cousa sabida que as galegas fora da Galiza organizamo-nos naquilo que temos chamado de Centros Galegos. O presente artigo e seguintes oferecem um sucinto e, naturalmente, incompleto repasso pelas notícias que recolhemos de guitarristas que tocaram nalgumas Casas da Galiza e outras associações de gentes galegas em Cuba, Argentina, Brasil e Uruguai, sedes dos primeiros Centros Galegos. E também incluímos as de Lisboa e Madrid.

O Centro Galego da Havana

Grande Teatro da Havana, sede do Centro Galego desde 1914. Arquiteto: Paul Beleu. © Dominio público / Wikipedia.Grande Teatro da Havana, sede do Centro Galego desde 1914. Arquiteto: Paul Beleu. © Dominio público / Wikipedia.

A Sociedade de Beneficência da Havana, instituição galega em Cuba desde 1871-72, manteve desde o início uma relação organizativa muito próxima com o Centro Galego (1879), que se via refletida nas suas atividades. Um exemplo disto são as duas notícias sobre Vicente Franco Fernandez, membro do Centro Galego e guitarrista colaborador no concerto organizado pela Sociedade em 1886. Achamos que este Vicente Franco é o guitarrista nomeado por Soriano Fuertes, Varela Silvari (1874), Saldoni e Pedrell. Para mais pormenores sobre o ferrolano Vicente Franco veja-se Rei-Samartim (2020, pp. 479-481).

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Almuinha (2008, p. 37), no seu estudo sobre a música dos galegos em Cuba, explica que tanto o Centro Galego, quanto as associações que giravam em torno dele estiveram sempre associadas ao trânsito profissional de músicos entre Galiza e Cuba, e desenvolveram a vocação de muitos amadores através do ensino musical e da dança, a criação de bandas de música, agrupações corais, coros galegos e orquestras de plectro.

A escola organizada pelo Centro Galego, o Plantel Concepcion Arenal que depois seria a Escuela de Formacion Primaria Concepcion Arenal, até à atualidade, estabeleceu uma atividade formativa em diversas áreas, entre elas, a música, núcleo de onde sairia o Conservatório Nacional de Cuba. Entre o primeiro professorado do Plantel estavam os guitarristas José Castro Gonzalez Chané, José Fernandez Vide e Francisco Rodriguez Carballés que dirigiriam os coros e orquestras de cordofones (Almuinha, 2008, pp. 43-44).

Atividades musicais e alunado

As atividades do Centro Galego começaram logo em 1880. Assim, em 1882 temos notícia do guitarrista Mungol, que toca um Capricho de Concierto sobre motivos da Lucia di Lammermoor, e o duo de bandurra e guitarra de Lima e Valdés que acompanhavam o cantor e humorista El Galleguito na canção intitulada Punto Vueltabajero (El Eco de Galicia, 1882).

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O Bazar do Centro Galego, instalado num dos salões do Plantel Concepcion Arenal, com objetos de todo tipo e material artístico como quadros e bordados, foi inaugurado em 1883 com um recital do guitarrista bonaerense Juan Alais, que depois seria assíduo do Centro Galego de Buenos Aires, mas que já nas últimas décadas do século XIX mantinha estreito contato com a comunidade galega da América Latina (El Eco de Galicia, 1883). Como veremos mais para a frente, Alais tocava uma guitarra construída pelo tominhense Francisco Nuñez, que era também o seu editor em Buenos Aires.

Em 1884, numa das denominadas "reuniões familiares" no Centro Galego, gratuitas para as sócias e sócios, atuaram o cantor Menendez e o guitarrista Varela a interpretarem a canção A la luz de la luna (El Eco de Galicia, 1884), que imaginamos seja a composta por Gaston Antonio Olavarria Maytin (1840-1891), que foi cantada e gravada na primeira metade do século XX pelos tenores italianos Enrico Caruso e Tito Schipa. Vejam-se os quatro registos desta obra da BNE. A canção começa com uma primeira parte de carácter melancólico em 3/4 e passa à segunda parte, em 6/8 no ritmo e carácter típicos das havaneiras. Menendez e Varela poderiam ser dos primeiros alunos da escola de música do Centro Galego que já funcionava em 1885.

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Ao guitarrista Varela vemo-lo um ano mais tarde participando na função extraordinária de angariação de fundos para o orfeão Ecos de Galicia. Esta agrupação foi a primeira formação musical galega em Cuba, fundada em 1872 e depois impulsada pela fundação do Centro Galego e a Sociedade de Beneficência, com as quais sempre manteve estreitas relações (Almuinha, 2008, pp. 104-105). Na função o coro interpreta as obras de Varela Silvari Gloria á Galicia, em imitação do Gloria á España de Clavé, com letra de Emilia Calé, e a jota Mariolina a quatro vozes com letra de Enrique Benabento. Também estreiam na Havana a obra En el mar de Francisco Piñeiro, com letra de Carlos Suances.

O evento, dividido em três partes, ofereceu na segunda uma sessão de guitarra em que intervinha Varela acompanhando a tiple ourensana Dorinda Rodriguez na interpretação da obra de Salgado e Curros, Unha noite na eira do trigo. Também foi interpretada a canção patriótica cubana El hijo errante, com acompanhamento de guitarra por Eugénio L. Bouza, Ricardo Blanco e Sebastian Aguiar, que imaginamos eram alunos da escola, como Varela e Menendez (El Eco de Galicia, 1885). Tenha-se em conta que, desde 1868 até à consecução da sua independência em 1898, Cuba estava em estado de guerra permanente. É justo o momento em que se desenvolvem as sociedades galegas que não ficaram à margem dos acontecimentos políticos. Depois da independência do país, os músicos galegos continuaram a emigrar à Havana, onde na primeira metade do século XX realizaram um dos maiores labores de difusão e instrução musical da cultura galega.

Em 1886, voltamos a ver o guitarrista Bouza acompanhando o cantor Menendez no Teatro Albisu, noutra das funções em benefício do Ecos de Galicia realizada em 24 de fevereiro. O duo de canto e guitarra interpretou a canção cubana El condenado. Nesse evento também intervém a estudantina Nuestra Señora de las Mercedes (El Eco de Galicia, 1886).

As orquestras de plectro

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A criação de agrupamentos musicais como bandas, orfeões, coros e grupos de cordofones dedilhados foi uma das principais atividades das sociedades que se reuniam em torno do Centro Galego. Já desde o começo ofereciam ensino de música e potenciaram a interpretação em conjunto para a criação de laços de solidariedade. A prática musical serviu para aumentar a consciência social dos seus membros, gerando a coesão necessária para o desenvolvimento da comunidade galega em Cuba.

Regentes dos agrupamentos com guitarras e cordofones de plectro ligados ao Centro Galego foram:

1) O compostelano José Castro Gonzalez Chané (1856-1917), a quem já tratamos ao falar da atividade musical de Evangelino Taboada e da obra de Chané Alalá e Alvorada, arranjada para grupo de plectro em 1926 pelo músico de Santander assentado em Vigo, Santos Rodriguez Gomez.

O filho do primeiro Chané chegou à Havana no fim do ano 1893 e já desde o início desenvolveu uma intensa atividade musical até à sua morte em 1917. A influência de José Castro Chané marcaria a atividade musical dos galegos em Cuba, pois presidiu concursos, foi professor de música, regente da banda, do coro Os Cantores Celtas, da orquestra da Ópera, das dos teatros Payret, Albisu e Tacon, do orfeão Ecos de Galicia e dos grupos de plectro como a Rondalla de la Sociedad Euterpe. Chané criou a secção da filharmonia do orfeão Ecos de Galicia cujo grupo de plectro estaria dirigido por Constantino Pereira e mais tarde por Joaquin Zon, denominando-se Rondalla del Plantel Concepción Arenal ou Filarmonía de la Sección de Bellas Artes del Centro Gallego. Chané foi também um dos principais cultivadores da canção galega de concerto. Uma relação das composições de José Castro Chané está em Gomez e Cancela (2017, pp. 142-143).

José Castro atuava também como solista de bandurra acompanhando-se de pianistas destacados como o cubano Miguel Gonzalez. Almuinha recolhe parte das suas composições para esta formação: Os teus ollos, Cantiga, A foliada, Fantasia de aires gallegos e Riveirana, que seriam arranjos para bandurra e piano das próprias composições, da canção de Salgado e Curros, e adaptações de música popular galega. Além deste repertório, Chané dirigiu com os coros música de zarzuela, ópera francesa e italiana, de autores catalães, as suas próprias obras galegas e de outros autores como Montes e Veiga, mas também doutros menos conhecidos, como o corunhês Juan Maria Lopez (1855-1939).

Dous apontamentos

Neste artigo saíram informações sobre duas pessoas ligadas à música do Centro Galego da Havana das que agora colocamos um par de apontamentos que os voltam a ligar ao mundo da guitarra galega:

Francisco Piñeiro sai nomeado neste artigo porque o orfeão Ecos de Galicia da Havana estreou uma obra dele no mesmo evento em que participava o guitarrista Varela. Sobre Francisco Piñeiro dizer que era o pai do compositor e pianista Prudencio Piñeiro (1838-1919). A notícia citada indica que esta obra tinha sido estreada com grande sucesso no Ferrol, na inauguração do dique da Campana "por todos los orfeones de Galicia". O dique da Campana para a reparação de barcos grandes, situado na zona do Arsenal no Ferrol, foi a maior obra de engenharia hidráulica da Galiza no século XIX. Obra do catalão Andrés Comerma, patrocinador da orquestra de plectro Airiños d’a miña terra, foi estreado em 1879. Para a sua inauguração convidaram-se bandas de música e orfeões de toda a Galiza, organizou-se a construção de um circo, ou seja, um espaço especial para as atuações, e nos certames participaram os melhores músicos galegos. Essa obra de Piñeiro era a obrigada para os orfeões.

E depois vemos que o grupo de plectro do orfeão Ecos de Galicia era dirigido por Constantino Pereira. Por Almuinha (2008, p. 95) sabemos que este Pereira, antes de dirigir a filharmonia do orfeão Ecos de Galicia, foi regente do orfeão El Hércules. Em 1895 este outro orfeão interpretava um hino galego composto por Pereira. Além desse hino, Pereira compôs mais obras para orfeão como a jota La directiva, a mazurca Concha e a valsa Recordos da Estrada. O título desta última obra levou-me a suspeitar que Constantino Pereira seria familiar de Camilo Pereira Freigenedo, original do Carvalhinho, mas assente na Estrada, que era o pai de Virgínia e Clementina Pereira, respetivamente casadas com Afonso Daniel Rodriguez Castelão e Benito Lopez Paratcha. A família do primeiro colecionou um grande fundo musical com obras para guitarra que se conserva no Fundo Local de Música de Rianjo. E o segundo era o industrial e amigo da música, dono dum dos armazéns onde se vendiam guitarras na cidade da Ponte Vedra.

Continua no seguinte artigo.

Referências citadas

  1. Almuinha, Ramom Pinheiro. (2008). A la Habana quiero ir: los gallegos en la música de Cuba. Santiago de Compostela: Sotelo Blanco.
  2. El Eco de Galicia. Revista semanal de ciencias, arte y literatura. (1882). “Centro Gallego”. Havana: 3 de dezembro, p. 7.
  3. El Eco de Galicia. Revista semanal de ciencias, arte y literatura. (1883). “Centro Gallego”. Havana: 11 de fevereiro, pp. 5-6.
  4. El Eco de Galicia. Revista semanal de ciencias, arte y literatura. (1884). Havana: 13 de janeiro, p. 7.
  5. El Eco de Galicia. Revista semanal de ciencias, arte y literatura. (1885). “Teatro de Albisu”. Havana: 12 de abril, p. 7.
  6. El Eco de Galicia. Revista semanal de ciencias, arte y literatura. (1886). Variedades. Havana: 21 de fevereiro, p. 6.
  7. Gomez, Sixto e Cancela, Alberto. (2017). Chané. O nacemento da música popular galega. Compostela: aCentralFolque.
  8. Rei-Samartim, Isabel. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela.
  9. Varela Silvari, José Maria. (1874). Galería biográfica de músicos gallegos. Corunha: Vicente Abad.
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