Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

A “cítara” na Galiza. Virtuosismo e música de câmara

Isabel Rei Samartim
jueves, 16 de mayo de 2024
Bandolim no Museu Fernando Blanco de Cee © 2024 by Isabel Rei Samartim Bandolim no Museu Fernando Blanco de Cee © 2024 by Isabel Rei Samartim
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Nas pesquisas sobre o século XIX na Galiza, nas fontes para guitarra apareceu várias vezes em castelhano um curioso instrumento chamado de “cítara”. Para entender o que acontecia, enveredei por um caminho que resultou ser mais longo e também mais luminoso do que eu pensava.

Os nomes dos instrumentos

Dediquei bastantes páginas a tratar o tema dos nomes dos instrumentos, especialmente dos cordofones dedilhados de braço, ramo ao que pertence a grande família das guitarras/violas/violões.

Grupo de plectro ca. 1900. Fonte: Museu da Ponte Vedra. © 2024 by Isabel Rei Samartim.Grupo de plectro ca. 1900. Fonte: Museu da Ponte Vedra. © 2024 by Isabel Rei Samartim.

Cheguei à conclusão de que na historiografia galega um único nome podia designar instrumentos diversos (cítara), vários nomes podiam referir o mesmo instrumento (viola, guitarra), havia palavras que adjetivavam instrumentos pela procedência, mas não pela origem (guitarra inglesa, viola francesa), e mesmo os nomes podiam acompanhar-se de adjetivos a imprimirem uma marca de cor nacional (gaita galega, guitarra espanhola).

Algo semelhante acontece ainda no presente, em que várias palavras designam um mesmo instrumento (viola, violão, guitarra), um mesmo termo é aplicado a vários tipos de instrumentos (guitarra portuguesa -cistre- frente à guitarra espanhola -viola-, ou no Brasil gaita e sanfona por acordeão) e os adjetivos empregados levam à confusão entre procedência e origem (guitarra inglesa, viola francesa). Os vocábulos atuais conservam origens genéricas que ajudam a entender os percursos que puderam experimentar os instrumentos ao longo da história na Europa.

O antigo sistema dos professores Hornbostel e Sachs

A proposta classificatória de Hornbostel e Sachs tratava as cítaras como cordofones simples, separando-as dos alaúdes e guitarras: "3.1. Simple chordophones or zithers" (MIMO 2). Esta separação impedia ver a origem comum destas grandes famílias que oferece a Linguística. Agora já não parece lógico separar as cítaras (zithers) das guitarras (guitars) porque:

  1. A palavra guitarra (guitar em inglês) é derivada do genérico kithara > cítara (Coromines, 1980-1991).
  2. Ainda hoje qualquer tipo de cordofone dedilhado pode ser chamado de cítara.

Então temos, por um lado, a etimologia que está a evidenciar a ligação íntima entre as palavras cítara e guitarra. E, por outro lado, o uso moderno da palavra cítara, que se acha em qualquer dicionário atual, tanto em português quanto em castelhano.

Nova proposta de classificação organológica

Festa em Redondela, 12 de junho de 1913. Fonte: Leboreiro (1997). © 2024 by Isabel Rei Samartim.Festa em Redondela, 12 de junho de 1913. Fonte: Leboreiro (1997). © 2024 by Isabel Rei Samartim.

Na tese A guitarra na Galiza há uma proposta de classificação que modifica a dos professores alemães. A proposta diz que a palavra ‘cítara’ tem um significado genérico e pode ser aplicado a instrumentos musicais muito variados. As cítaras podem dividir-se em instrumentos de braço e sem braço. O ramo das cítaras de braço incluiria as três grandes famílias de cordofones dedilhados: as guitarras/violas, os alaúdes e os cistres. E o ramo das cítaras sem braço seria a relativa às harpas, saltérios e resto de cordofones com harpa, que incluiria também os instrumentos de tecla como cravos e pianos.

A cítara nos textos galegos

Uma das primeiras citações históricas galegas da palavra cítara, na forma latina cithara/citharis, é a que aparece na História Compostelana, no livro I, capítulo 61, página 112, ano 1110, quando numa festividade na cidade de Compostela:

omnis Compostellanorum turba cum tympanis & citharis & diversis musicorum instrumentis cantantes

Na tradução própria, revisada pelo professor Dr. Pena Granha: "a multidão compostelana [ia pelas ruas] a cantar com tambores e cítaras e variados instrumentos musicais".

A palavra não abandonaria a língua. Séculos mais tarde, Bento Feijó (1753) escreveu uma das mais belas descrições do céu cristão, evocadora da arte do Mestre Mateus no Pórtico da Glória, onde constatava o uso da palavra grega cítara já consolidada em todas as línguas românicas com o seu significado genérico a referir qualquer instrumento de corda.

No manuscrito anónimo Cincuenta décimas contra Diego Zernadas (Fernandez, 2017) datado entre 1745 e 1777 realizava-se uma crítica satírica e irónica profunda ao Cura de Fruíme. O texto era ilustrador da relação de Zernadas com a música:

pois pola lira ou a zitra
mereces con un a Mitra
que che fagan Cardenal.

Observemos que o primeiro verso oferece uma oposição entre a lira e a cítara, de maneira que para o poeta parecem ser instrumentos diversos.

Foi o grande Borobó, Raimundo Garcia Dominguez (Ponte Cesures, 1916 - Compostela, 2003), quem primeiro reivindicou a galeguidade da guitarra através da vida de Rosalia e dos seus filhos e filhas (Borobó, 1999, pp. 42-45), também com as cítaras pelo meio:

Pero había que sopesar el papel de la guitarra, papel claro está pautado, en la lírica gallega decimonónica: acaso semejante al de la cítara en manos de los trovadores y segreles de los cancioneros galaico-portugueses.
De esta forma, Rosalía de Castro de Murguía, por ejemplo más preclaro, como aún recuerda contar a su abuelo Xaquín el ahora nonogenario Pipote, compuso la letra de la Alborada, verso a verso, con sus palabras truncadas, sin escuchar directamente los sones de la gaita del repoludo gaiteiro ullanés, sino oyendo una vez y otra vez más la interpretación melodiosa de su música del amanecer, a través de las cuerdas de la guitarra que magistralmente tañía.

A “cítara” decimonónica em castelhano

Bandola ou alaúde moderno no Museu Fernando Blanco de Cee. © 2024 by Isabel Rei Samartim.Bandola ou alaúde moderno no Museu Fernando Blanco de Cee. © 2024 by Isabel Rei Samartim.

O certo é que os jornais do século XIX na Galiza publicavam ao 99% em castelhano, daí que o uso da palavra “cítara” fosse bastante habitual. Assim temos o construtor Jesus Vilar, violeiro em Compostela, a fazer guitarras, cítaras, bandurras e cordas metálicas para guitarras, pianos, alaúdes e bandolins (Gaceta de Galicia, 1889).

Também José Toríbio Campo Castro, no seu Nuevo método en cifra para guitarra doble, octavilla, bandurria o cítara (Madrid, 1872) descrevia a cítara como um cordofone de plectro de afinação própria, com a caixa a meio caminho entre um cistre e uma guitarra (Rey e Navarro, 1993, pp. 74-78).

No Álbum de Fernando Torres Adalid aparecem várias obras dum ainda desconhecido F. F. Lopez, que poderia ser o autor dum método para guitarra em 1839 e doutro para cítara em 1843, este último publicado em Valência: Nuevo metodo teórico-practico para aprender a tocar la cítara por cifra, sin necesidad de maestro, compuesto por D. F. F. López, profesor de música bajo la direccion de D. Jose Sanchiz (alias el ciego de la Ollería), que pode ser consultado na página web da Biblioteca digital da Universidade de Utreque.

Em português esse cordofone era e é conhecido por bandola, e no seu tamanho mais pequeno, chamava-se bandolim. Também pode conhecer-se por alaúde moderno. Vários exemplares destes instrumentos conservam-se na coleção de instrumentos do Museu Fernando Blanco de Cee (Galiza).

Intérpretes de cítara na Galiza

A família Chané era uma das mais importantes famílias de músicos galegos do século XIX, quase todos eles intérpretes de diversos cordofones de mão. O primeiro músico conhecido desta saga, Joam Castro Rebollo (Ferrol, 1833 - Corunha, 1880), foi citado como excelente intérprete de cítara, guitarra e bandurra (Estrada, 1986, p. 127).

As guitarras inglesas, portuguesas ou cistres também foram nomeadas pela imprensa galega em castelhano como cítaras. Assim, Reinaldo Álvares Varela tocava uma cítara, segundo a imprensa, que seria uma guitarra portuguesa ou uma bandola da época.

Nas notícias sobre as orquestras de plectro os instrumentos eram nomeados segundo a nomenclatura em castelhano (El Lucense, 1891):

guitarras, guitarrones, bandurrias, cítaras, bandolones, octavinos y bandolines.

É curioso como em castelhano podia haver “bandolones” e “bandolines”, mas não bandolas e sim “cítaras”. Em qualquer caso, estes instrumentos patenteavam a variedade de cordofones dedilhados que ainda havia no final do século na Galiza.

Música de câmara com cordofones dedilhados

Vitrina no Museu Fernando Blanco de Cee. © 2024 by Isabel Rei Samartim.Vitrina no Museu Fernando Blanco de Cee. © 2024 by Isabel Rei Samartim.

Os duos de bandurra, bandolim, cítara e guitarra são formações canônicas na Galiza de final do século XIX. Amplamente cultivadas, a sua frequência na Galiza é equivalente à dos orfeões ou à das orquestras de plectro. Os e as intérpretes destes cordofones destacavam pelo virtuosismo, entanto a guitarra fazia o acompanhamento harmónico, no mesmo estilo do também canônico duo de guitarra portuguesa e viola, ou o duo de violino/rabeca e guitarra. Os trios e quartetos eram igualmente canônicos, mas menos frequentes e, por isso, mais admirados e achavam-se normalmente ligados aos concertos das orquestras de plectro.

Em novembro de 1896 apresentavam-se na redação do jornal Gaceta de Galicia em Compostela os irmãos José e Francisco Fernández, de Outes, que formavam um duo de “cítara” e guitarra e, além disso, eram prestidigitadores, fotógrafos e gravadores em cristal (Gaceta de Galicia, 1896a). Não deixa de ser curioso o relacionamento entre o virtuosismo musical e a prestidigitação, característica de grande parte dos recitais de variedades.

Cítara e guitarra portuguesa

Anúncio da loja de guitarras de Sanchez Puga em Vigo. Fonte: Faro de Vigo (1903). © 2024 by Isabel Rei Samartim.Anúncio da loja de guitarras de Sanchez Puga em Vigo. Fonte: Faro de Vigo (1903). © 2024 by Isabel Rei Samartim.

Também, em dezembro do mesmo ano, o duo de “cítara portuguesa” e guitarra formado pelos irmãos Bermudez tocava no Café Regional situado na rua Preguntoiro em Compostela (Gaceta de Galicia, 1896b). Esta tal de “cítara portuguesa” devia ser, na realidade, uma guitarra portuguesa. O emprego do cultismo 'cítara' era tão popular no final do século que até corria uma publicação La Cítara: revista semanal científico-literaria (1882) dedicada não à música, mas à criação literária e outros assuntos do momento.

Um duo de cítara e guitarra formado por uns tais Álvarez e Rodriguez atuava em 20 de novembro de 1898 na velada benéfica organizada pela Cruz Vermelha de Lugo, partilhando evento com a Estudantina Lucense, várias mulheres músicas como Julia de la Mota, Isabel Fernandez, Albina Hidalgo e a sua irmã, Teresa e Josefa Garcia, a Sra. de Pons de Doña e a sobrinha de Montes, Asuncion Montes (1862-1942), excelentes pianistas. Também participaram o próprio Montes e o seu aluno e violinista, José Maria Carracedo, que depois o sucederia na direção do orfeão e chegaria a dirigir a Estudantina (El eco de Galicia, 1898a; Varela, 1990, pp. 159 e 226).

Este recital benéfico teve várias resenhas favoráveis na imprensa das que destacamos algumas impressões sobre o duo, especialmente sobre o citarista e tenente de artilharia Álvarez (El Regional, 1898):

De los hombres, debe hacerse mención especial del Sr. Alvarez, que en el manejo de la cítara demostró ser verdadero maestro. Acompañado por el señor Rodríguez López ejecutó dos números que al público le supieron á poco. El instrumento músico de los antiguos bardos, revivía en manos del Sr. Alvarez con todas sus dulzuras y todos sus encantos, tributando el público una entusiasta ovación al que desde anteanoche quedó reputado entre el público lucense como verdadero maestro.

O mesmo duo atuou em dezembro noutro recital onde participou junto com a orquestra de plectro do Casino (El eco de Galicia, 1898b).

Os cordofones dedilhados com caixa em forma de lágrima ou pera (piriformes) foram, portanto, parte importante do imaginário musical galego desde a Idade Média e até ao século XX, integrando uma parte do que eu gosto em referir como a grande família das guitarras.

Referências citadas

Borobó. (1999). A cantora do Sar. Da man de Rosalia e co seu patronato. Padrão: Fundacion Rosalia de Castro.

Coromines, Joan. (1980-1991). “Guitarra”. Diccionario crítico etimológico castellano e hispánico(2), pp. 92-93. Madrid: Gredos.

El Eco de Galicia. Órgano de los gallegos residentes en las repúblicas sud-americanas. (1898a). Buenos Aires: 30 de junho, p. 8.

El Eco de Galicia. Órgano de los gallegos residentes en las repúblicas sud-americanas. (1898b). “La "Cántega" de Curros”. Buenos Aires: 30 de agosto, p. 5.

El Lucense. (1891). Lugo: 24 de fevereiro, p. 3.

El Regional. (1898c). “La velada del domingo”. Lugo: 22 de novembro, p. 2.

Estrada Catoyra, Félix. (1986). Contribución a la Historia de La Coruña. La Reunión Recreativa e Instructiva de Artesanos en sus ochenta y tres años de vida y actuación. Corunha: Reunión Recreativa e Instructiva de Artesanos. É reimpressão do livro publicado em 1930.

Falque Rey, Emma. (1994). Historia Compostelana. Tres Cantos: Akal.

Feijó, Bento. (1753). “El deleite de la Música, acompañado de la virtud, hace en la tierra el noviciado del Cielo. A una Señora devota, y aficionada a la Música”. Cartas eruditas y curiosas, IV(I)

Fernandez Salgado, Xosé Antonio. (2017). Cincuenta décimas contra don Diego Zernadas. Santiago de Compostela: Laiovento.

Gaceta de Galicia. (1889). Santiago de Compostela: 14 de janeiro, p. 3.

Gaceta de Galicia. (1896a). Santiago de Compostela: 7 de novembro, p. 2.

Gaceta de Galicia. (1896b). Santiago de Compostela: 1 de dezembro, p. 2.

Lopez, F. F. (1843). Nuevo metodo teórico-practico para aprender a tocar la cítara por cifra, sin necesidad de maestro, compuesto por D. F. F. López, profesor de música bajo la direccion de D. Jose Sanchiz (alias el ciego de la Ollería). Valência: Emprenta de Blat.

MIMO 2. Musical Instrument Museums Online 2. (s. d.). Revision of the Hornbostel-Sachs Classification of Musical Instruments by the MIMO Consortium.

La Cítara: revista semanal científico-literaria (1882/11/13).

Rey, Juan José e Navarro, Antonio. (1993). Los instrumentos de púa en España. Bandurria, cítola y “laúdes españoles”. Madrid: Alianza Música.

Varela de Vega, Juan Bautista. (1990). Juan Montes. Un músico gallego. Corunha: Deputação Provincial.

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