Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaAs orquestras de plectro (7): Tui e o Vale Minhor
Isabel Rei Samartim
Falar da música em Tui é remontar-se ao século XII em que começou a construir-se uma catedral que hoje ainda conserva um órgão barroco e, no mínimo, dez esculturas de vários estilos históricos a tocarem guitarras. Mas, o sintoma mais agudo de que a guitarra na Galiza tinha um sentido de seu é a participação dos e das guitarristas nos movimentos intelectuais e populares galeguistas.
A música galega tinha na guitarra e nos cordofones dedilhados um espaço natural, em pé de igualdade com a gaita e outros instrumentos, neste tipo de comemorações.
O pianista Viera publicava na Gaceta de Galicia (1891) uma extensa resenha das festas patronais tudenses dedicadas a São Telmo, em que descrevia o recital realizado a noite do 25 de junho onde participaram duas bandas de música, o orfeão A Oliva de Vigo, o grupo de ocarinas de Valença, a orquestra de Tui e um conjunto de guitarras e bandurras.
Nesse ano as festas patronais, em que estava inserido o recital, foram uma celebração do regionalismo galego, com a realização dos Jogos Florais que reuniram uma boa quantidade de intelectuais como Manuel
Comenzó el Sr. Cerviño saludando a Galicia, elogiando á los hijos amantes que trabajaban por la redención de su patria, y declarando que el regionalismo estaba llamado a regenerar nuestras costumbres, á resucitar nuestro pasado glorioso, y á salvar nuestros más caros intereses. Tuvo el Sr. Cerviño frases enérgicas y viriles, pintando con los mas vivos colores el amor á la patria y á la verdadera libertad de los pueblos. Dijo que la religión bendicía (sic) la idea salvadora que entrañaban los Juegos Florales, prólogo de grandes acontecimientos para Galicia, y que la religión contribuirá siempre á la libertad y al progreso, en el sentido verdadero que estas ideas deben tener.
Reveriano
No Vale Minhor
Somente três anos mais tarde do nascimento de Reveriano Soutullo em Tui, nasce o que seria o mais importante regente, transcritor e compositor de música galega para orquestra de plectro,
Parece que German Lago Duran nasceu em Vigo, mas a sua vinculação ao Vale Minhor produziu-se desde criança. Era filho de Emilio Lago e Manuela Duran e a sua infância transcorreu perto da Ramalhosa, localidade situada a ambos os lados da desembocadura do rio Minho que faz parte, junto com Gondomar e Nigrão, da comarca do Vale Minhor. Ali estudou solfejo e piano com o regente da Banda de Música de Mougas (Baiona), Urbano Vernet. E desde 1900, com 17 anos de idade, organizou e dirigiu orquestras de plectro e orfeões como A Lira de Gondomar, antes de ir estudar música a Madrid.
German Lago chegou a ser funcionário chefe da administração espanhola da Fazenda, mas o seu talento musical destacou-se por cima de qualquer outra atividade. Viajou a Madrid como bolseiro da Câmara viguesa, onde estudou oficialmente violino e harmonia, obtendo as melhores qualificações. Além disso também aprendeu piano. Foi um prestigiado professor de guitarra, bandurra e alaúde na sociedade madrilena Fomento de las Artes e sócio da Asociación Española de Concertistas. Rey e Navarro recolhem esta citação de um jornal da época:
Lago es un hombre muy alto, delgado, de porte y ademanes distinguidos. Y este hombre singular que toca la guitarra, el laúd, la mandolina, el violín y el piano, reúne tales cualidades de formidable organizador, que raramente se hallaría otro que se le pueda igualar.
Esta descrição de Lago foi refletida na caricatura publicada por Amoedo (2019, p. 131). Em 1911, Lago organiza a Orquesta Mandolinista Española que, supomos, é a que toca em 1912 em Madrid na preparação de uma viagem a Londres, a cujo concerto assiste o Presidente da Câmara de Vigo, Joaquin Martinez. Além disso, nesse ano Lago envia como obséquio duas composições suas para banda à Câmara Municipal viguesa. Todas estas informações estão em Amoedo, na antedita citação.
Em 1915, Lago organiza a orquestra do Centro Hijos de Madrid, conhecida por Rondalla Matritense, com a que estreia uma Balada de Montes e a canção Os teus ollos de Chané arranjadas para orquestra de plectro. Em 1912 Lago envia duas composições para banda à Câmara de Vigo (Amoedo, 2019, p. 131). Mais para a frente será o fundador e regente da histórica Orquesta Ibérica de Madrid, com a que realizará as suas mais conhecidas atuações, que em 1928 contava já com cinquenta professores.
Assíduo da Sociedade Lar Gallego, centro galego fundado em 1929 por
O repertório da Orquestra Ibérica
Do músico galego, nascido no Brasil e criado em Madrid, Ricardo Freire Gonzalez (1928-2001), Lago Duran arranjou a obra Estudiantina de Madrid-Pasacalle-marchiña, da que se conserva a partitura na BNE. Com a Orquesta Ibérica, German Lago realizaria também repertório dos grandes compositores europeus, no seu afã duplo de aproximar esta música do povo e, ao tempo, estabelecer a orquestra de plectro como instrumento de música erudita.
Assim, no fundo da BNE achamos arranjos seus de obras de Bach, Händel, Gluck, Mozart, Beethoven, Schubert, Mendelssohn, Wagner, Strauss, Brahms, Grieg, Offenbach, Rimsky-Korsakov, Rossini, Paganini, Bolzoni, Bizet, Iradier, Granados, Albéniz, Chapí, Barbieri, Chueca, Breton, Fernandez Caballero, Oudrid, Vives, Araque, Padilla, Texidor, Serrano, Carmona, Pinilla, Lecuona, Francisco Tárrega, Federico Moreno Torroba e Manuel Maria Ponce, entre outros, além do próprio Lago Duran.
Assinalam Rey e Navarro (1993, p. 145) que uma das virtudes atribuídas à Orquesta Ibérica foi o seu repertório de música de séculos passados. Esta atribuição fazia-se no século XX, nos tempos da ditadura após a Guerra da Espanha, época em que a ideia da guitarra como instrumento de nacionalidade espanhola interessava aos objetivos simbólicos do Regime. Lago Duran conta entre os seus troféus o ter-se negado a ser apadrinhado pelo partido único oficial daquele tempo, a Falange unificada. Porém, o seu excelente trabalho de repertorista foi aproveitado politicamente para a construção do símbolo musical espanhol excludente das outras realidades nacionais. Paralelamente a esta construção política da guitarra, cujo foco era unicamente a atual guitarra de seis cordas, decorria o desaparecimento, ou ocultação, da variedade instrumental dos cordofones de plectro dentro do Reino da Espanha.
A Orquesta Ibérica esteve ativa até 1965, momento em que por motivos de saúde o seu fundador teve de abandonar a atividade concertística. Além de guitarrista, violinista, pianista e regente, German Lago Duran foi um excelente cantor de fados e tangos. As suas obras foram publicadas pela Editorial Música Moderna em número superior a 250. Lago também foi editor de música em Madrid, com endereço na rua Hileras, 9, destacando entre as suas publicações as obras de Reveriano Soutullo (Amoedo, 2019, p. 382). Amoedo (p. 256) recolhe também duas obras assinadas como "L. Duran".
Ainda mais orquestras
Por último, e ainda que nos faltam as fontes primárias, temos constância de que havia no Vale Minhor mais orquestras de plectro no tempo em que Lago Duran triunfava na sua terra. Até agora sabemos que em Gondomar, Jesus Salcedo (ou Salceda) del Castillo dirigia uma orquestra mista, de homens e mulheres, talvez inspirada na orquestra feminina de
Para encerrar, por enquanto, esta série de artigos sobre as orquestras de plectro na Galiza, podemos refletir um pouco sobre as circunstâncias em que se deram estes agrupamentos no longo e atribulado século XX. Nos três períodos de estudo que me proponho: 1) o primeiro terço até ao golpe fascista de 1936, 2) as ditaduras até à queda, em 1974 em Portugal e em 1975 na Espanha, e 3) o último terço de convalescença das ditaduras até ao ano 2000, variam os motivos, lugares e instituições que organizaram este tipo de agrupamentos musicais.
No primeiro terço do século ainda funcionavam as sociedades filarmónicas, associações vizinhais e culturais que começaram no final do século XIX. Durante a ditadura franquista predominaram as orquestras organizadas pelas instituições da ditadura: a Frente de Juventudes, a Seccion Femenina, e as de tipo religioso como as Juventudes Antonianas, que foram bem conhecidas em toda a Galiza pelas suas “rondallas”, como a que atuou em 1978 na Ramalhosa, Vale Minhor (El Pueblo Gallego).
Contudo, as festas anuais continuaram a juntar pessoas não ligadas diretamente à ditadura em orquestras de cordofones laicas por todas as vilas galegas. No último terço do século, ainda que a ressaca das ditaduras piorou as condições sociais e culturais, alguns agrupamentos resistiram a passagem do tempo e das adversidades. Mais reflexões serão necessárias para podermos compreender historicamente este período tão próximo, e tão complexo, das nossas vidas. Nisso estamos.
Referências citadas
- Amoedo Portela, A. (2019). El piano en la obra de Reveriano Soutullo Otero (1880-1932). Tese de doutoramento. Valência: Universitat Politècnica de València.
- Circular de presentacion da sociedade Lar Gallego de Madrid. (s. d.). Documento depositado no Arquivo da RAG e consultado no Arquivo Dixital de Galicia.
- El Pueblo Gallego. (1978). “La Ramallosa. Hoy es la fiesta central de las bodas de diamante de la Juventud Antoniana”. Vigo: 18 de junho, p. 17.
- Gaceta de Galicia. (1891). “Desde Tuy. La funcion á San Telmo”. Santiago de Compostela: 30 de junho, pp. 1-2.
- Gaceta de Galicia. (1900). “Sección regional”. Santiago de Compostela: 6 de abril, p. 2.
- Rey, Juan José e Navarro, Antonio. (1993). Los instrumentos de púa en España. Bandurria, cítola y “laúdes españoles”. Madrid: Alianza Música.
- Valverde Alonso, Antonio. (2007-2009). “Um músico miñorán”. Revista de Estudos Miñoranos, 7-9 (pp. 121-142).
- Valverde Alonso, Antonio. (2010). “German Lago Duran”. Historias dun lazarillo (Blog): 7 de março.
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