Vox nostra resonat

Obedecer ou desobedecer, eis a questão

Isabel Rei Samartim
jueves, 5 de septiembre de 2024
Whether 'tis nobler in the mind to suffer or to take arms against a sea of troubles © Dominio público Whether 'tis nobler in the mind to suffer or to take arms against a sea of troubles © Dominio público
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À primeira vista toda a gente concordaria em que as letras do alfabeto não deveriam ser um grande problema para os assuntos de qualquer nação. Porém, na Galiza, nação sem Estado próprio e com um governo regional fraco, o uso de esta ou aquela letra segundo a ortografia da língua é capaz de gerar ódios, injustiças e até abusos perpetrados pelo Governo contra os seus próprios funcionários e as liberdades da cidadania.

Dous de setembro de 2024, primeiro dia do novo ano letivo. Como nos melhores tempos das autocracias, fui informada de que para assumir a chefia do Departamento de Guitarra do centro educativo em que trabalho, eu deveria aceitar a perda da liberdade ortográfica e nunca escrever, como é o meu habitual, na norma internacional para o Galego. Naturalmente, essa obriga afetaria todos os textos gerados por mim como chefa do departamento: atas, informes, cartazes de concertos, etc. que eu deveria redigir usando a norma ortográfica que a Conselharia da Educação ordena.

Uma ordem ilegal

Muito nos tem ensinado Hannah Arendt sobre a obediência cega às ordens. A banalidade do mal, que ela explicou, consiste em que a pessoa deixa de lado a responsabilidade pelas próprias ações e unicamente atende a fazer o que lhe é mandado. Desse modo, o tenente-coronel Adolf Eichmann, um dos administradores do programa nazista chamado Solução Final judaica, declarou em 1961 no seu julgamento em Jerusalém que ele só tinha seguido as ordens dos seus superiores. Assim foram massacrados milhões de judeus e assim continuam a funcionar os massacres hoje, como no caso de Gaza.

A pirâmide que leva desde o presidente da Xunta da Galiza até ao funcionário básico da educação não é egípcia, nem está belamente arquitetada nos arredores da cidade do Cairo, ainda que pelo seu funcionamento possa ser comparada a uma necrópole. O diretor do centro suporta na sua caluga as ordens da inspetora, que suporta na sua cabeça as do seu superior, que leva às costas as ordens do secretário correspondente que, por sua vez, engole todas as ordens que lhe chegam do conselheiro, e este do presidente autonómico, que guarda nas unhas das mãos e dos pés as ordens do chefe do partido, que por sua vez estampa a fronte contra outros colegas poderosos do ditoso partido. E assim por diante. É a pirâmide de Kafka. O processo.

Escusado é dizer que as que queremos um mundo melhor devemos romper essa cadeia de acontecimentos. Especialmente as pessoas que, como eu, temos o privilégio dum emprego estável e bem pagado. Fazer o que nos mandam para levar a chefia do departamento em troca dalgumas aulas menos à semana e uns euros mais ao mês, além das muitas horas burocráticas onde se geram aqueles documentos antes mencionados, não compensa porque não constrói um mundo melhor.

O mito da norma oficial

A ordem dada pela senhora Maria Elena Urtiaga Estevez, inspetora da Conselharia da Educação, que por sua vez recebe ordens dos seus superiores na Xunta da Galiza, é uma ordem ilegal. E, por isso, não deve ser obedecida. No atual Reino da Espanha, tal como estão as leis desde a Constituição de 1978, ninguém pode obrigar outra pessoa a usar esta ou aquela norma ortográfica. Porque as normas ortográficas não são objeto de lei. Elas funcionam por consenso, o que significa que o seu uso é uma eleição que cabe tomar individualmente a cada uma das usuárias da língua.

E depois de fazer essa eleição individual, em que cada quem escolhe a norma da sua preferência, também cabe no Reino da Espanha o uso defeituoso das normas, caso não nos lembrarmos delas (imaginemos uma pessoa com perda de memória), ou por não as termos aprendido corretamente (se temos sido negligentes durante a escola), ou por cometermos algum erro de teclado (no mundo digital atual é muito frequente). Em quaisquer dos casos possíveis em que as normas ortográficas escolhidas forem violadas ou não atendidas, o único importante é que os textos se entendam bem. Juridicamente, a compreensão prima sobre a ortografia, de maneira que uma galinha e uma galiña resultam ser, objetivamente, a mesma galinha.

Por outras palavras, algo que já foi dito muitas vezes: não existe a norma ortográfica “oficial” pela qual a Conselharia da Educação ordena realizar ações ilegais. Na Galiza coexistem várias normativas ortográficas em uso porque não há consenso sobre a forma escrita da nossa língua, principalmente porque os responsáveis políticos da normalização escolheram ir contra o que aconselharam os especialistas e o que está explicado pela Filologia e a Linguística Históricas. Como a orientação escolhida pela Xunta não foi científica, o resultado é que meio século após a ditadura a questão da língua na Galiza continua sem resolução.

Abandono do Galego, boas-vindas ao Espanhol

Lamentável nota anónima publicada pelo jornal La Voz de Galicia, em 3 de abril de 2014. Fonte: Isabel Rei Samartim. © Dominio público.Lamentável nota anónima publicada pelo jornal La Voz de Galicia, em 3 de abril de 2014. Fonte: Isabel Rei Samartim. © Dominio público.

A Xunta da Galiza, e mais concretamente, a Conselharia da Educação, foi responsável em 2014 pela admissão e tramitação das queixas da professora de inglês, a senhora Glória Lago, uma delas realizada contra a EDLG do centro sob a minha coordenação. A Lago era representante do grupo associativo chamado Galicia Bilingüe, hoje extinto e destilado noutro grupo auto-denominado Hablemos Español. O naquele tempo secretário de Política Linguística, Valentim Garcia Perez, que por sinal continua na atualidade a usufruir o mesmo cargo, colocou-se do lado da queixosa e foi contra a funcionária (uma servidora) e o diretor do centro educativo na altura. Parece que dez anos mais tarde, nada mudou. Quem nos dera ter dado algum passo adiante, caro poeta Diaz Castro, mas todos os que demos, como acontece ao trasno brasileiro Curupira, nos levaram para trás!

Curupira, trasno brasileiro da floresta cuja característica e ter os pés revirados para trás. Fonte: Internet. © Dominio público.Curupira, trasno brasileiro da floresta cuja característica e ter os pés revirados para trás. Fonte: Internet. © Dominio público.

Nos últimos cinquenta anos o reintegracionismo manifestou, por todos os meios, que esta questão das letras é muito mais profunda, importante e decisiva do que puder parecer. Porque o enfraquecimento da língua escrita leva-nos a perder, definitivamente, a língua falada. Como explicou o professor Carvalho, fala e escrita estão intimamente entrelaçadas. Se o modelo escrito não for válido por não responder aos critérios científicos básicos e por cortar na prática as raízes internacionais, então tampouco haverá respeito pela comunicação oral. É o que está a acontecer. Se a essa evidência somamos a anuência do governo regional galego com as posições espanholistas mais radicais e antigalegas, temos servida a receita do desastre.

De volta ao conservatório

Agradeço a proposta dos meus colegas do Departamento de Guitarra para eu levar a chefia durante os próximos quatro anos, mas vistas as condições impostas pela Administração da Educação, vejo-me na obriga de declinar o oferecimento. Ainda mais sabendo que nem a inspetora, nem o chefe territorial concordam com a proposta. Entendo que esta decisão minha poderá confortar os importantes cargos administrativos aludidos, além do sempiterno secretário da política linguística e, quem sabe, se até o rodante presidente da Xunta. Para todas elas e eles envio desde aqui uma cálida saudação. Podem ficar descansad@s.

Estas linhas finais estão dirigidas às pessoas do comum que, como eu, se preocupam diariamente com aquelas ordens absurdas que são impelidas, ou coagidas, a obedecer. Queridas e queridos: assumir a obediência é ficar sem língua. E sem língua tampouco haverá futuro para nós como galeg@s. Poderemos, em qualquer caso, ser espanhóis. Isso, se conseguirmos tal cousa, porque tampouco é doado. Desistir de nós é mais complicado e traz muitas dores de cabeça. É mais fácil e gratificante lutar, resistir, dar a batalha.

A Hannah Arendt ensinou-nos a reconhecer e denunciar os meios pelos que os massacres são cometidos: primeiro, por aqueles que mandam e, segundo, por aqueles que obedecem aos que mandam. Mesmo que os massacres sejam silenciosos e até ocultos, pelo bem de tod@s, perante ordens absurdas, eu desobedeço.

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