Vox nostra resonat
A guitarra na GalizaA guitarra popular galega
Isabel Rei Samartim
Continuando a tradição de séculos anteriores, o
povo galego tem criado e divulgado constantemente música para guitarra e outros
instrumentos de corda dedilhada. Tanto na pintura quanto nas folhas volantes
com cantigas, ficaram numerosas pegadas do intenso uso popular das guitarras
que houve na Galiza ao longo do tempo.
Cegos guitarristas
Uma via de criação popular muito antiga e diretamente ligada às festas populares, documentada por toda a Europa e também entre nós, é a dos músicos invisuais que iam às festas, cantavam romances e, com o desenvolvimento da imprensa, vendiam os textos das canções impressos em folhas volantes. Desde 1581 e até ao ano de 1833, os músicos da confraria Hermandad de Ciegos, criada na cidade de Madrid, tinham privilégios exclusivos para a venda de papeis impressos e para cantar canções populares.
A pessoa invisual era um ou uma profissional da música que realizava um espetáculo e mantinha um amplo repertório desde as canções mais antigas até às mais modernas do momento (Castro Vicente, 2010-2011). O estigma de pobres e ruins não sempre se correspondia com a realidade. Sem se fazerem ricos, estes músicos podiam viver do seu trabalho. Era comum para eles e elas aprender na infância com outro músico cego e, uma vez preparad@s, começar a desenvolver a sua atividade nas feiras, romarias, festas patronais, bodas, entrudos, bailes, tabernas e qualquer lugar onde as gentes se reuniam para passar o tempo de maneira festiva. Cantavam e tocavam romances, cantares sobre crimes e desgraças, cantigas satíricas, cantos religiosos, de reis, vilancicos e o repertório instrumental da época onde também havia peças de sabor galego como moinheiras, alalás e alvoradas.
A atividade musical das pessoas invisuais está
diretamente ligada à literatura de cordel, que é a mais abundante e
interessante amostra de literatura popular fungível. Quando nas cidades e vilas
se fundavam as primeiras sociedades filantrópicas, no campo galego viviam-se
acontecimentos como o da revolução soberanista de 1846 e os seguintes anos da
fome, de que se fariam eco os Valladares em 1852 (Ferreirós, 2018, pp. 122 e 213)
e depois, em 1853, o casal Castro-Murguia (Murguia, 1886, p. 263). As e os
guitarristas populares narravam estes e outros acontecimentos e mantinham em
circulação a enorme rede de folhas volantes que realizavam a um tempo a função
de entretenimento e informação numa época em que a profissão jornalística era
ainda escassa e inconstante.
Folhas volantes
Na Biblioteca Geral da USC (cota: RSE.FOLL XIII) conserva-se um volume factício de folhas volantes datadas em torno da primeira metade do século XIX, com romances, notícias e outros textos que, originalmente, foram publicados soltos e em vários lugares como Galiza, Portugal, Catalunha e Castela. Dentre os textos com data, o mais antigo é de 1810 e o mais moderno de 1859, os dous publicados em Compostela. Alguns contêm alusões à guitarra/viola e ilustrações com pessoas a tocarem este instrumento e outros cordofones dedilhados.
Há também reimpressões de textos publicados originalmente noutras cidades e impressões originais galegas. O volume chegou à BUSC através dos fundos da Real Sociedad Económica de Amigos del País de Santiago e contém uma longa série de folhas volantes com poemas, romances, lendas e histórias para tocar e cantar.
Acompanhando os textos, o volume contém também
desenhos de figuras humanas com instrumentos, sendo numerosas as representações
de guitarras. Um dos desenhos mais repetidos é o do trovador, um homem vestido
em estilo antigo que senta sobre uma rocha ou elevação natural da terra de modo
a imitar o cruzamento das pernas do Rei David representado na Catedral
compostelana.
Mulheres guitarristas
As mulheres guitarristas também são representadas nesse volume factício a tocarem diversos tipos de guitarras. Muitas delas são representadas de pé, modo muito popular de tocar o instrumento, com a guitarra segurada de maneira oblíqua, isto é, o braço mais elevado do que a caixa. Veja-se que uma das figuras eleva o seu pé esquerdo para apoiar melhor o instrumento.
Noutra parece ver-se uma cabeça de guitarra a conter nove pontos com as suas cravelhas o que poderia representar uma guitarra de cinco ordens com a prima simples, mais própria do final do século XVIII. Outros instrumentos parecem já guitarras românticas de seis cordas simples.
Cantigas populares
As cantigas populares faziam parte dos textos distribuídos nas folhas volantes. Através delas podem-se descobrir mais pegadas da guitarra na música popular galega. Como exemplo, para este artigo fiz uma seleção de cantigas do pesquisador galego José Carlos Rey Cebral, a quem agradeço a generosidade de me ter enviado o seu trabalho.
Na primeira cantiga há uma interessante alusão à vila de Carinho, que ainda hoje é um foco de guitarristas e agrupamentos com guitarras. A copla nomeia um guitarrista, Vicente Virinho, que poderia ser o mesmo vizinho de Ortigueira que aparece em 1809 colaborando com a organização comarcal contra os exércitos franceses do general Ney (Vazquez, 1809). Com efeito, a vila de Ortigueira está situada entre as de Espasante e Carinho. Se estamos no certo, esta estrofe poderia datar-se dos primeiros anos do séc. XIX (a transcrição das letras das cantigas é nossa e está adaptada à ortografia atual do português estândar mantendo as características populares galegas):
Embarquei-me numa lancha
de Espasante pra Carinho,
oim tocar a guitarra
de dom Vicente Virinho.
Nesta outra cantiga aparece um 'guitarreiro' de Merza (Vila de Cruzes), que poderia ser tanto um guitarrista famoso na comarca, quanto um construtor de guitarras ao tempo que guitarrista:
O guitarreiro de Merza
toca e toca todo o dia,
quando vai chegando a noite
acabou-se-lhe a alegria.
As cantigas também dão pistas sobre as madeiras com que as guitarras estavam construídas e o tipo de cordas que se empregavam. A madeira de pinho foi, desde sempre, um material imprescindível, mas também a de salgueiro parece ter sido empregada na lutaria galega. As cordas de metal situam a primeira copla no final do séc. XIX, e além disso, a estrofe nomeia mais um intérprete anónimo, da vila de Ares, também no litoral Norte da Galiza, perto do Ferrol:
Esta guitarra é de pinho,
as cordas são de metal,
o mocinho que a toca
de Ares é natural.
A guitarrinha da seguinte quadra sugere tanto um diminutivo carinhoso quanto a imagem de uma guitarra pequena e aguda, como as já vistas na primeira parte. É conveniente lembrar que os diversos tamanhos do instrumento foram de uso comum em toda a Europa e, mais tarde, foram transportados para a América, onde continuaram o seu desenvolvimento:
Tenho quatro pandeiretas,
guitarrinha de salgueiro,
tenho trinta e sete amores,
não sei qual será o primeiro.
A seguinte quadra recolhe o emprego da palavra galego-portuguesa 'vintém', que era a moeda de vinte réis vigorante durante os reinados de Fernando VII e Isabel II até 1868, ainda que a palavra foi popularmente usada durante muitos anos depois dessa data:
Eu comprei uma viola
que me custou um vintém,
o dinheiro pouco importa
se a viola toca bem.
A tríade céltica foi enunciada primeiro por Murguia (1865, 1, p. 253) e depois por Antonio de la Iglesia (1886, 3, p. 140) como "versificación popular en tercetos, peculiarísima de tierra galaica". Também Machado Álvarez (1881) a nomeia e compara com as soleares por tercetos no seu estudo sobre o cante flamenco. Todos estes autores exemplificam a tríade céltica com uma boa quantidade de coplas recolhidas pelo intelectual estradense Marcial Valladares na zona da Ulha, e ordenadas sob o título de Cantar do Pandeiro, dentro do cancioneiro Ayes de mi país (1865), publicado em 2010 por Orjais e Rei-Samartim. Rey Cebral oferece-nos uma nova tríade com referência à guitarra e ao poder da sua música para influir nas emoções:
Guitarra de triste canto,
quando te colho no colo
tornas o meu riso em pranto.
Não somente o plectro era empregado para tocar a guitarra popular, mas também os dedos e as unhas. A identificação das cordas quebradas com os cabelos eriçados é uma imagem recorrente que humaniza o instrumento:
Ai Manuel, Manuel,
que borracho ves,
tocas a guitarra
coas unhas dos pés.
Tocade essa guitarra,
repenicade esses dedos,
se se quebrassem as cordas,
assi ficam meus cabelos.
Nas cantigas populares também está a imagem do guitarrista cantor de voz forte e afinada. A referência ao bairro remete para uma possível origem urbana:
Quem me dera uma guitarra
para cantar neste bairro,
coa voz dum creguinho novo
e coa garganta dum galo.
Um referente fundamental na Galiza, a gaita galega, é também alvo das coplas de viola, e nada é o que parece:
Dos Chãos a Facós
tudo é parola,
ali está tocando
o gaiteiro a viola.
Rey Cebral recolhe um outro ditado popular que nos pareceu eloquente, tão antigo quanto moderno, cuja datação resulta difícil de determinar: "Palavras sem obras, guitarra sem cordas" e nomeia também algumas cantigas recolhidas na Límia Baixa por Xocas (Lorenzo, 1973, p. 103), que recordam o Padre Feijó e a sua lembrança das gentes portuguesas atravessando Ourense de caminho a Compostela sempre acompanhadas duma viola. Não sabemos se seria tanto movimento de violas por Ourense o que deu, na segunda metade do século XIX, curiosos frutos guitarrísticos já vistos nos artigos dedicados à guitarra galega ourensana:
Minha Virgem do Gerês
tem uma janela nova
para ver os portugueses
como tocam a viola.
Xaquín Lorenzo Fernández "Xocas" (1907-1989), ourensano, foi um grande estudioso da etnografia galega, discípulo do historiador galego Florentino Lopez Cuevillas. O seu irmão Xurxo tocava guitarra e diversos cordofones dedilhados. Rey Cebral recebeu de Xocas algumas cantigas recolhidas em 1987 na romaria da Virgem do Faro, na Límia Baixa. Por sinal, Facós, em Lobeira, é o lugar de nascimento dos irmãos Lorenzo Fernandez.
Para ir concluindo, lembremos a primeira estrofe do romance de Dona Silvana, recolhida no Cancionero Musical de Galicia (Sampedro, 1942, I, p. 119 e II, p. 38) cantada por Lucia Dominguez, de 68 anos de idade, em Cercedo, em 1904:
Estando Dona Silvana
no jardim que o Rei lhe tinha
dixo tocando a viola
à beira da figueirinha...
Barbeiros e perruqueiros também contribuíram frequentemente para o mundo popular da guitarra. Por último, no repertório dos séculos XIX e XX apreciam-se rastos de melodias populares mais antigas que serão tratados em próximos artigos.
Referências citadas
- Castro Vicente, Cástor. (2010-2011). “A música tradicional na Limia Alta”. Lethes: Cadernos culturais do Limia(10), pp. 91-129.
- Ferreirós Espinosa, Carlos. (2018). O legado dos Valladares de Vilancosta. Santiago de Compostela: Centro Ramon Piñeiro.
- Iglesia, Antonio de la. (1886). El idioma gallego: su antigüedad y vida, 3. Corunha: La Voz de Galicia.
- Lorenzo Fernandez, Xaquin. (1973). Cantigueiro popular da Limia Baixa. Vigo: Galaxia.
- Machado Álvarez, Antonio. (1974). Colección de cantes flamencos. Madrid: Demófilo. Reedição do original de 1881.
- Murguia, Manuel Martinez. (1865). Historia de Galicia, v. 1. Lugo: Soto Freire.
- Murguia,
Manuel Martinez. (1886). Los Precursores. Corunha: Latorre e Martinez.
- Orjais,
José Luís do Pico e Rei-Samartim, Isabel. (2010). Ayes
de mi país. O cancioneiro de Marcial Valladares. Baiona: Dos Acordes.
- RSE.FOLL XII: É uma das cotas da Biblioteca Geral (USC) em que aparecem diversos textos a conterem folhas volantes com cantigas populares e desenhos de músicos.
- Sampedro Folgar, C. (1942). Cancionero Musical de Galicia. Madrid: Diputaciones de las cuatro provincias del Antiguo Reino de Galicia.
Comentarios