Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

O Manuscrito Barroco do Museu da Ponte Vedra

Isabel Rei Samartim
jueves, 26 de diciembre de 2024
Primeira face do Manuscrito Barroco. Museu da Ponte-Vedra © 2024 by Isabel rei Samartim Primeira face do Manuscrito Barroco. Museu da Ponte-Vedra © 2024 by Isabel rei Samartim
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Acompanhando o Caderno do Francês, manuscrito com canções da Francesada para canto e guitarra conservado no Museu da Ponte Vedra, achei umas folhas soltas, algumas das quais, à primeira vista, pareciam mais antigas do que aquele caderno. 

Depois de reparar melhor vi que, com efeito, algumas dessas folhas soltas continham acompanhamentos para guitarra no estilo barroco peninsular, escritos em alfabeto italiano. 

Havia também junto a estas e o Caderno do Francês, outras folhas soltas que eram apontamentos posteriores, provavelmente do século XIX, em notação moderna. E tudo estava catalogado no Arquivo do Museu na mesma cota: Sampedro 46-18.

Essas folhas fazem um total de 22 fólios dos quais 3 pertencem ao Manuscrito Barroco para guitarra e os outros 19 estão dedicados à aprendizagem dos rudimentos musicais e à música para violino. Num dos fólios aparece o nome da pessoa para a que foram copiadas algumas das peças. 

Trata-se do presbítero José Fontecoba: "Contradanzas / Para Violin 1º y 2º / Copiadas para uso del Pbro. D. Jose / Fontecoba // Pontevedra, 28 de Julio de / 1831". No meio, em tinta mais escura, aparece um outro nome, repetidas vezes: "Antonio Garcia". Noutro fólio volta a aparecer o nome de Fontecoba, desta volta numa pequena anotação em verso: "Para Fonteco/ba & del contenido / sino aprende / la musica / [palavra riscada ilegível] merece / pero yo miseri/cordiosa ?como / podre permi/tir semejante / cosa". Há mais uma indicação de data noutro dos fólios soltos com a inscrição "Contradanza del año de 1841". 

Poderia ser que todos os papeis de música conservados no Museu da Ponte Vedra na cota Sampedro 46-18 estivessem juntos já em 1841 e ligados a José Fontecoba.

Manuscrito Barroco

Fragmento da segunda e terceira faces do Manuscrito Barroco. Fonte: Museu da Ponte Vedra. © 2024 by Isabel Rey Samartim.Fragmento da segunda e terceira faces do Manuscrito Barroco. Fonte: Museu da Ponte Vedra. © 2024 by Isabel Rey Samartim.

O que dei em chamar de Manuscrito Barroco é um fólio dividido em 4 faces com anotações de acompanhamentos de música peninsular para guitarra típica dos séculos XVII e XVIII. O fólio lembra o estilo de uma folha volante como era, salvando a distância temporal e espacial, o próprio Manuscrito Vindel. Consta de várias peças das quais há uma para canto e guitarra e o resto são instrumentais. Em nenhuma figura anotada a melodia que provavelmente acompanhavam. As obras e fragmentos estão escritas em alfabeto e uma delas em pentagrama, mostrando assim que o guitarrista autor do manuscrito conhecia os vários métodos de escrita musical da época.

Sobre a origem da partitura

No Museu da Ponte Vedra conserva-se a biblioteca do grande erudito pontevedrês Casto Sampedro Folgar, jurista e fundador da Sociedade Arqueológica da cidade, primeiro diretor do museu, autor do Cancionero Musical de Galicia e bom conhecedor da música galega do seu tempo. Sabemos que durante toda a sua vida Sampedro manteve contato intelectual com numerosos correspondentes quer na Galiza, quer em toda a península, com os que trocou informação a respeito de quase qualquer tema cultural e musical.

Descrição do Manuscrito Barroco

Fragmento da quarta face do Manuscrito Barroco. Fonte: Museu da Ponte Vedra. © 2024 by Isabel Rei Samartim.Fragmento da quarta face do Manuscrito Barroco. Fonte: Museu da Ponte Vedra. © 2024 by Isabel Rei Samartim.

O Manuscrito Barroco contém anotadas as seguintes peças:

1ª face - El Fandango. Falsetas. Otra [Falseta]. Fragmento (I) com cifra. Media subida. Fragmento (II) com cifra. Subida entera. Otro [Fandango] e acordes (para realizar sobre o modelo rítmico proposto?). Falsetas escritas em pentagrama.

2ª e 3ª face - Seguidillas de Dueño Mío [la subida]. Continuação das falsetas em música notada da primeira face. Sequência de acordes em pentagrama [no final há rascunhadas umas notas a lápis].

4ª face - Seguidilla del Jorgeo. La gayta gallega.

É preciso destacar o aspeto humilde do documento, que não se apresenta com pretensões de método, nem de obra compilatória, mas como uns apontamentos de música escolhida e própria do instrumento. O manuscrito começa com um signo a fazer de título ou início e, depois, sobre uma linha do tempo vão-se dispondo as diferentes sucessões de acordes e ritmos. Todos os acordes indicados coincidem com o alfabeto de Montesardo. As partes que estão em cifra podem ser entendidas segundo os alfabetos castelhano e catalão descritos por Valdivia (2015, pp. 156-176). Todas as peças carecem de indicações de compasso.

Enquanto os diferentes acordes vão sendo indicados, cada mudança harmónica assinala-se com uma barra perpendicular à linha do tempo. As indicações de rasgado (para cima, para baixo) têm algumas características curiosas como o uso de ligaduras com um valor técnico-guitarrístico, sem nada a ver com a expressão musical ou o valor das notas. 

Na última face, sobre as anotações de La gayta gallega há umas indicações de cifra castelhana escritas com outra tinta e letra, a sugerirem uma adição posterior. É possível, por isso, que o manuscrito tivesse passado por vários intérpretes. No final das peças há sempre uma barra dupla, algumas com indicação de repetição com dous pontos a rodearem a linha do tempo.

Temporalização e estilo

Detalhe do alfabeto, números e outros signos na primeira face do Manuscrito Barroco. Fonte: Museu da Ponte Vedra. © 2024 by Isabel Rei Samartim.Detalhe do alfabeto, números e outros signos na primeira face do Manuscrito Barroco. Fonte: Museu da Ponte Vedra. © 2024 by Isabel Rei Samartim.

Com base no conteúdo musical, este manuscrito pode ser datado na segunda metade do século XVIII, pois aos fandangos, gaita e vilão, danças típicas nos livros peninsulares de guitarra do século XVII e também presentes no XVIII, une-se a presença de novos elementos como as seguidillas.

O manuscrito também oferece uma curiosa mistura entre o estilo antigo de escrita (o alfabeto) e o moderno (o pentagrama), o que propõe a sua interpretação histórica como um elemento intermédio entre ambos os estilos e um exemplo quase fotográfico do momento em que os guitarristas passavam dum mundo ao outro na escrita da música para guitarra.

É por isso muito possível que essas peças fossem tocadas já com guitarras de seis cordas simples e afinadas como na atualidade, as quais são próprias do final do século XVIII. Esta suposição apoia-se nas indicações de digitação nos fragmentos escritos em pentagrama, onde pode ver-se que o Fá# é tocado no quarto traste da 4ª corda (Ré), sugerindo a afinação em Sol da 3ª corda.

Sobre a música do Manuscrito Barroco

Os fandangos e seguidilhas deste manuscrito assemelham-se no tipo de rasgado e coincidem quase completamente nas indicações rítmicas. As falsetas parecem interlúdios instrumentais. No manuscrito há algumas escritas em alfabeto, a indicarem só as harmonias pelas que a melodia da falseta tem de discorrer. Mas também há uma falseta escrita em notação moderna, que contém números ao lado das notas a indicarem o traste em que são tocadas. 

Esta notação auxiliar permite suspeitar que os possíveis intérpretes do manuscrito eram guitarristas ainda mais acostumados a ler em cifra do que em pentagrama. As falsetas são interlúdios e parecem ter uma função semelhante aos passacailles

Na época existiam passacailles em compasso binário e ternário, como é o caso deste manuscrito e também de três dos que compõem o livro de Antonio de Santa Cruz (2014). Igualmente, um passacaille para guitarra do Manuscrito Guerra, conservado na Biblioteca Geral da USC, é de compasso ternário e tem essa função de interlúdio entre tons.

A Media subida é uma sucessão de acordes ascendente, algo mais curta do que La subida entera que é mais longa. Ambas conservam o compasso e o ritmo das falsetas e do fandango. Todos eles parecem fragmentos harmónicos suscetíveis de empregar-se como ligação a outras peças ou como sequência sobre a que improvisar melodias. 

As Segidillas [sic] de Dueño Mio têm música e letra e, no meio, figura anotada a peça El Villano Jocoso, composta por uma frase com três variações rítmicas e harmónicas. Não figura a letra das Segidillas del Jorgeo [sic] ainda que coincidem ritmicamente com as seguidilhas e os fandangos anteriores. 

Finalmente, aparece La Gayta Gallega em ritmo de moinheira. Ainda sem indicações de compasso, a tablatura deixa ver que todas as peças e fragmentos estão em 3/4 salvo o Villano, em 2/4, e a Gayta, em 6/8.

Questões relativas à transcrição

A linha do tempo que sustenta a sucessão dos acordes e o sentido dos rasgados possui, como é natural no emprego do alfabeto, as letras em tamanho bem visível a indicarem os acordes que devem ser tocados. Além disso, como é habitual na época, o rasgado está indicado mediante uns signos em forma de linha curta que nascem perpendicularmente da linha do tempo, situando-se para cima ou para baixo segundo o sentido do rasgado.

Toda a escrita do manuscrito está orientada à descrição do rasgado. O rasgado é o conceito musical dominante e tudo se supedita a ele. Por isso é possível supor que o autor do manuscrito tenha sido um intérprete de guitarra provavelmente de formação popular que, aliás, estava familiarizado com a escrita violinística e já a aplicava nas suas anotações. 

Que o rasgado é o elemento musical mais importante vem também definido pela indicação na mudança de acordes. As que parecem barras de compasso e não são tais, são umas linhas verticais a indicarem somente as mudanças de acordes. As ligaduras não são de expressão, mas indicam o movimento da mão que se encarrega do rasgado. 

As indicações não parecem sistemáticas e observam-se algumas hesitações como as dos primeiros compassos do fandango e as das primeiras falsetas. Para uma análise dos signos usados no Manuscrito Barroco consulte-se Rei-Samartim (2020, pp. 242-245).

Dentro das cifras que acompanham o alfabeto podem usar-se como modelo tanto a cifra catalã quanto a castelhana, ambas definidas por Valdivia (2015). Para a transcrição eu escolhi a catalã por dar umas soluções harmónicas mais lógicas e naturais dentro do estilo barroco.

Características do autor com base no manuscrito e novas hipóteses

As três melodias e o acompanhamento de gaita galega na transcrição dos originais. Transcrição: As três melodias e o acompanhamento de gaita galega na transcrição dos originais. Transcrição: Isabel Rei Samartim. © 2024 by Isabel Rei Samartim.As três melodias e o acompanhamento de gaita galega na transcrição dos originais. Transcrição: As três melodias e o acompanhamento de gaita galega na transcrição dos originais. Transcrição: Isabel Rei Samartim. © 2024 by Isabel Rei Samartim.

Num princípio, e assim figura na minha tese, pareceu-me que tudo apontaria a que o autor deste manuscrito fosse um guitarrista do âmbito mediterrânico que conhecia bem a música peninsular, o alfabeto italiano, a cifra catalã, a tablatura e a escrita moderna, a qual não tinha reparo em incluir ao lado da música dedilhada. 

O facto de haver uma gayta gallega parecia indicar uma procedência forânea do manuscrito, pois essas peças parecem uma visão da música galega realizada desde outros territórios peninsulares numa época em que era habitual fazer esse tipo de imitações. De facto, as gaytas, galegas ou não, musettes e hornpipes eram danças características reproduzidas nos manuscritos barrocos para guitarra e alaúde em toda a Europa.

As três melodias e o acompanhamento de gaita galega comparadas e transportadas ao mesmo tom. Análise: Isabel Rei Samartim. © 2024 by Isabel Rei Samartim.As três melodias e o acompanhamento de gaita galega comparadas e transportadas ao mesmo tom. Análise: Isabel Rei Samartim. © 2024 by Isabel Rei Samartim.

Mas, agora mesmo, após quatro anos de distância, atrevo-me a pensar que também um guitarrista galego poderia ter composto essas harmonias de “gayta” sobre alguma das melodias publicadas em livros anteriores de guitarra, pois o acompanhamento escrito no Manuscrito Barroco do Museu da Ponte Vedra coincide exatamente tanto com a “gayta” de Santa Cruz quanto com a do Códice Saldívar de Santiago de Múrcia que, aliás, são a mesma melodia que aparece mais tarde, na segunda metade século XIX, no fundo Pintos Fonseca do Museu da Ponte Vedra. 

Esta última é a moinheira publicada por Campo Castro em Madrid, que contém várias melodias de moinheiras unidas. Uma dessas melodias é a mesma de Santa Cruz, que é a mesma de Múrcia e também entra, começando na segunda parte do compasso, nas harmonias anotadas neste Manuscrito Barroco, sendo a melodia de moinheira, ou gaita, mais reproduzida em livros ou partituras de guitarra conhecidos por mim até ao momento.

Agradecimentos

Este artigo nº 100, sem ser o último da série A guitarra na Galiza, pois tenho intenção de continuá-la no futuro, sim é a minha última publicação quinzenal no Mundoclasico.com

Quero agradecer imensamente a acolhida que recebi da diretora Maruxa Baliñas e do editor Xoan M. Carreira, o oferecimento para escrever e divulgar as informações que tanto tempo, energia e dinheiros me levaram investigar, e a amabilidade extrema com que sempre fui tratada por tod@s. 

Começou esta série em abril de 2021 e andou regularmente, primeiro com frequência semanal, depois quinzenal, até este mês de dezembro de 2024. A partir de agora, os temas que ficaram sem tratar poderão ser divulgados com frequência mais irregular. Também continuarei a minha colaboração no Mundoclasico.com com resenhas e notícias. Levo destes anos muitas boas memórias e várias amizades que criei em torno deste jornal, exemplo de jornalismo musical e cultural de que me orgulho em participar e continuarei a ter presente na minha vida.

Referências citadas

  1. Rei-Samartim, Isabel. (2020). A guitarra na Galiza. Tese de doutoramento. Universidade de Santiago de Compostela.
  2. Santa Cruz, Antonio. (2014). Obra para guitarra. Madrid-Córdoba: Sociedad de la Vihuela.
  3. Valdivia Sevilla, Francisco Alfonso. (2015). La guitarra rasgueada en España durante el siglo XVII. Málaga: Universidad de Málaga.
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