Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

Guitarristas da Galiza na emigração (2)

Isabel Rei Samartim
jueves, 18 de abril de 2024
Música prohibida de Juan Alais © 2024 by Isabel Rei Samartim Música prohibida de Juan Alais © 2024 by Isabel Rei Samartim
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No artigo anterior víamos agrupamentos com guitarras e cordofones de plectro ligados ao Centro Galego da Havana e começávamos com Chané. Mas em Cuba houve mais galegos guitarristas que podiam dirigir este tipo de grupos musicais:

José Fernandez Vide

O organista ourensano José Fernandez Vide (1893-1981) viajou à Havana chamado pelo Centro Galego para trabalhar como professor na Academia de Bellas Artes onde daria aulas de cordofones de arco e de mão e seria regente do orfeão e do grupo de plectro em1924. Este seria um dos melhores períodos para o agrupamento, sendo premiado em 1925 e 1926 nos certames de estudantinas organizados pela associação de comerciantes da Havana, até 1932 em que o Mestre Vide voltaria à Galiza. Em 1930, Vide foi nomeado diretor do Conservatório do Centro Galego. Almuinha (2008, pp. 96-97) regista várias obras de Vide para grupo de plectro: Vals Serenata (ca. 1925), A festa d'as Caldas, moinheira para bandolim, bandurra, guitarra e flauta (1925), Serenata de amor para tenor, coro e orquestra de cordofones, com letra de José Álvarez Nuñez (1927) e Posio, valsa para flauta e orquestra de cordofones (1927). Entre outras obras do autor, o duo para guitarras Violetas foi publicado pela editora Dos Acordes (Fernandez Vide, 2011). Em Villanueva (2006) podem ver-se algumas obras do autor e um estudo da sua vida. A obra completa do mestre Vide e o duo para guitarras Violetas foram publicadas pela editora Dos Acordes (Jurado, 2003; Fernandez Vide, 2011).

Francisco Rodriguez Carballés

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Francisco Rodriguez Carballés (Celeiro, Viveiro, 1862 - ?), foi violinista e discípulo do violinista cubano Torroella. Carballés ensinava também guitarra e cordofones de plectro. Foi para Cuba com 12 anos de idade, ca. 1874. Exerceu como professor de música em Manzanillo, localidade próxima a Guantánamo e Santiago de Cuba, onde em 1918 fundou a Academia de Música Santa Cecilia com a sua mulher, a pianista Berta Momoytio. Dirigiu o grupo de plectro da Academia de Bellas Artes do Centro galego depois de Vide. Carballés compôs para grupo de plectro um Poupourrit de aires gallegos, estreado em 1936, e renovou o repertório do grupo com, entre outras, as obras galegas O pensar do galeguiño, de Montes com letra de Aureliano Pereira, e o Canto de pandeiro, melodia popular harmonizada por Fernandez Espinosa (Almuinha, 2008, pp. 96-97).

Por último, o guitarrista limião Eulogio Gallego Martínez, que já temos tratado, aparecia em 1906 como professor de guitarra na Havana (Almuinha, 2008, p. 99).

O Centro Galego de Buenos Aires

No mesmo ano em que se fundava o Centro Galego da Havana, 1879, também começava o de Buenos Aires. Por motivos diversos, o de Buenos Aires deixou de funcionar desde 1893 a 1907. Por isso todas as notícias de guitarristas ligadas a esta instituição são do século XX. Porém, as pesquisas realizadas permitiram traçar alguns elementos indispensáveis para os guitarristas em Buenos Aires durante o último terço do século XIX.

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O elemento mais importante em torno do que girava a vida musical guitarrística em Buenos Aires entre 1870 e 1900 é a loja-armazém, escola, editora, oficina de construção e salão de música do baixo-minhoto Francisco Nuñez Rodríguez, a Casa Nuñez, mais tarde conhecida como Antiga Casa Nuñez. Frequentada pelos melhores guitarristas do momento, Alais, Sagreras, Manjón e outros, a Casa Nuñez oferecia o seu salão de concertos a profissionais e amadores. Ao tocar todos os elementos comerciais e artísticos da vida musical: construção, reparação e venda de instrumentos, partituras e acessórios, escola de música, tertúlia e organização de concertos, este armazém era um elemento aglutinador fundamental dos guitarristas em Buenos Aires. Pode dizer-se que, no âmbito musical, fazia as vezes de Centro Galego.

Consultando as notícias desta época e tendo em conta o número indiscriminado de pessoas galegas que emigrou à América Latina, e a necessidade dessas pessoas de continuar em contato entre elas, vemos que na província argentina de Corrientes também havia um Centro Galego em 1879 (El Correo Gallego, 1879).

Juan Alais, Tarantino e Salgado

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Um outro elemento de estudo era a atividade de Juan Alais, o concertista argentino mais destacado. Alais era próximo da comunidade galega em Buenos Aires e também na Havana, como vimos no artigo anterior. Outro facto que impulsou a guitarra em Buenos Aires foi a chegada do valenciano Casimiro Tarantino em 1899. Tarantino, que estava ligado ao Centro Galego da Havana e tocou na Galiza, publicava em 1900 um dos primeiros métodos argentinos para guitarra. A atividade de Tarantino em Buenos Aires seria principalmente a da docência.

Estava por esta época na Argentina o padre corunhês José Maria Salgado Ferreiro. Nos anos que morou na Argentina, entre 1870 e 1890, Salgado participou das atividades das diversas associações galegas e espanholas. Entre outras múltiplas atividades que desenvolveu foi sócio protetor do Grande Hospital de Buenos Aires. Ao seu retorno na Galiza temos notícias de Salgado ligado à atividade musical da sua escola para crianças invisuais na Corunha, onde havia ensino de guitarra e um grupo de plectro.

Música galega para além do Centro Galego

Por outro lado, a carência de funcionamento a partir de 1893 do Centro Galego não impede que os músicos galegos continuem com as suas atividades que, por falta de um local próprio, tinham de realizar-se no de outras sociedades. Assim, a organização dos músicos galegos em Buenos Aires girava em torno aos agrupamentos musicais como o Orfeon Gallego, fundado em 1890, depois dividido em dois: Orfeon Gallego Primitivo, e Orfeon Gallego, o agrupamento do Centro Galego, Orfeon Centro Gallego, e os sucessivos orfeões que foram fundados anos mais tarde.  

Em 1906 na velada em honor a Pascual Veiga celebrada no Teatro Victoria de Buenos Aires participaram, além do Orfeon Gallego Primitivo e o Orfeon Gallego, o Orfeon Coruñés e o Orfeon Mindoniense. Esta hiperatividade orfeonística estava em Buenos Aires no contexto dos orfeões europeus que também havia na cidade. Em 1893 Vilanova regista os orfeões alemão, francês, italiano e um Orfeon Vidal (Vilanova, 1966, II, pp. 950-952).

Como exemplo, em 1894, no teatro do Centro Union Obrera Española, o Orfeon Gallego celebrou um evento dramático-musical em que, além de uma orquestra dirigida por Eduardo Rico, e os atores e atrizes encarregados das obras dramáticas, participou um trio de dous bandolins e guitarra, cujos intérpretes eram A. Garcia, M. Valverde e J. Estival, que tocaram duas obras: a valsa Galicia por ti suspiro, do pianista e compositor compostelano Ricardo Perez Camino, primeiro regente do Orfeon Gallego, e a mazurca Isabel, composta por Vicente Fortunato (El Eco de Galicia, 1894).

Também em novembro de 1894, o compostelano Júlio Mirelis Garcia estava em Buenos Aires, chegado do Rio de Janeiro onde dirigia o orfeão Lira Gallega. Seria também regente do Orfeon Centro Gallego que continuava com os seus ensaios e recitais. Mirelis apresentava-se na redação do jornal El Eco de Galicia para deixar um exemplar do seu método. Como já vimos no seu artigo, anos mais tarde Mirelis seria nomeado vice-cônsul na cidade argentina de Rosário de Santa Fé. Ainda não temos claro o percurso de Mirelis pela América Latina, o tempo que morou num país ou noutro, mas achamos que o seu centro de atividades sempre foi o Brasil, concretamente o Rio de Janeiro, até ao seu falecimento.

Júlio Mirelis no Rio de Janeiro

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Antes de entrar a dirigir o orfeão do Centro Galego de Buenos Aires, Mirelis estava no Brasil. Ele deveu adquirir a nacionalidade brasileira e entrar na elite do país, pois casou com a brasileira Noemia Fialho e chegou a ser auxiliar do cônsul brasileiro em Barcelona. Esse pôde ser o início da sua carreira como diplomata que depois ampliou à Argentina.

Antes de se apresentar em Buenos Aires, Mirelis dirigiu, e possivelmente fundou, no Rio de Janeiro o Orfeão Lira Gallega, o que deve ser um dos primeiros orfeões galegos no Brasil. Só temos duas notícias da atividade deste orfeão, dos anos 1893 e 1894 e nas duas Mirelis era o regente. No jornal brasileiro O Paiz (1893), um autor que assinava como Sávon publicava uma breve nota de felicitação a Julio Mirelis pela atuação do orfeão Lira Gallega na sociedade El Casino Español do Rio de Janeiro. A nota, intitulada Viva Galicia!, era publicada em castelhano e replicada na Gaceta de Galicia em 1894 com o acréscimo referente às lembranças que de Mirelis guardavam os redatores do jornal.

Os galegos emigrantes integravam-se dentro da sociedade brasileira de modo semelhante aos emigrantes portugueses, que eram também vistos como galegos. Não há notícias de centros galegos no Rio de Janeiro no fim do século XIX, a Casa de Galícia funda-se em 1947 e em 1983 conflui com o Centro Espanhol para formarem a Casa de Espanha. Esta aparente falta de associacionismo galego no Brasil pode dever-se a que as necessidades reivindicativas galegas diminuíam em contextos lusófonos e intensificavam-se em contextos hispanófonos. Nos países americanos onde a língua era o castelhano, os galegos abrigavam-se dentro da própria comunidade, entretanto nos países onde a língua portuguesa era a oficial, os galegos não precisavam tanto dessa união de origem. Explicou a professora Mariana Novaes (2013) no seu estudo sobre a emigração galega no Rio de Janeiro, que a coletividade espanhola no Brasil era a terceira em importância após a portuguesa e a italiana, sendo que a maior parte desses espanhóis, entre 60 e 70%, eram na realidade galegos:

Tais índices podem ser explicados pela similaridade linguística do idioma galego com o português, a proximidade aos portos de embarque portugueses e a existência de uma corrente migratória prévia rumo ao Brasil intermediada por Portugal.

A emigração maciça dos galegos ao Brasil teria acontecido a partir de 1890. Assim, o nosso guitarrista e diplomata Mirelis teria sido mais um dos numerosos galegos embarcados nessa grande vaga migratória, abertos a procurar o seu futuro no país-continente de língua portuguesa.

Continua no próximo artigo.
Referências citadas

  1. Almuinha, Ramom Pinheiro. (2008). A la Habana quiero ir: los gallegos en la música de Cuba. Santiago de Compostela: Sotelo Blanco.
  2. El Correo Gallego. (1879). “De La Colonia Española de Montevideo. Centro Gallego”. Ferrol: 12 de dezembro, p. 2.
  3. El Eco de Galicia. Órgano de los gallegos residentes en las repúblicas sud-americanas. (1894). “Orfeón gallego”. Buenos Aires: 20 de agosto, p. 7.
  4. Fernandez Vide, José. (2011). Violetas. Valses para dúas guitarras. Baiona: Dos Acordes.
  5. Jurado Luque, Javier. (2003). Mestre Vide. Obra Completa. 4 v.: I: Piano. II: Voz e piano. III: Música Coral. IV: Zarzuela. Ourense: Deputação.
  6. Novaes, Mariana Gonzalez Leandro. (2013). “Os ‘galegos da Galícia’ no Rio de Janeiro”. Comunicação. Seminário Nacional de Memória Social (8-10 de maio).
  7. O Paiz. (1893). “Viva Galicia!”. Rio de Janeiro: 12 de dezembro, p. 3.
  8. Vilanova Rodriguez, Alberto. (1966). Los gallegos en la Argentina, 2 v. Buenos Aires: Ediciones Galicia.
  9. Villanueva Abelairas, Carlos. (2006). “José Fernández Vide (1893-1981): La figura y la obra de un músico de la emigración”. Porta da aira. Revista de historia del arte orensano(11), pp. 269-289.
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