Vox nostra resonat

A guitarra na Galiza

A Tuna Compostelana no século XIX

Isabel Rei Samartim
jueves, 26 de septiembre de 2024
Foto de Castelão nos tempos da Tuna Compostelana © 200 by Acuña Foto de Castelão nos tempos da Tuna Compostelana © 200 by Acuña
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O estudo sobre a Tuna Universitária em Compostela publicado por Cores Trasmonte em 2001 é o mais completo realizado até ao momento. Foi depois matizado por Cancela (2013) e Villanueva (2014). Aqui tratamos de resumir o essencial pondo o foco na transcendência desta Tuna como inspiradora das outras tunas galegas e portuguesas, e no seu papel aliciador da criação e interpretação de música galega para guitarra e outros corfodones dedilhados.

No estudo referido, Cores estuda as Tunas compostelanas entre os anos 1877 e 1900, onde explica a sua influência na vida social da cidade, a figura de Perez Lugin como retratista da época, as viagens e relações com as Tunas do Porto, Coimbra e Lisboa, e a função de coesão social que tinham estes agrupamentos (Cores, 2001, p. 115):

A tuna de Santiago, desde que empezou a saír por terra galega, cumpría unha función unificadora e reforzadora da conciencia galega. Como grupo integrado por membros procedentes dos mais distintos puntos de Galicia, con frecuencia atopaban en cada lugar que visitaban a colaboración necesaria que lles daba a familiaridade con determinadas persoas, sobre todo dada a condición socioeconómica e o status social dos seus membros.

Membros honoríficos da sociedade compostelana ligados à Tuna

Tuna Compostelana do ano 1888. © Domínio público.Tuna Compostelana do ano 1888. © Domínio público.

Os presidentes, regentes e representantes das Tunas estudadas por Cores Trasmonte foram o estudante de direito Antolin Mosquera Montes, representante da Tuna de 1877 que pronunciou um discurso perante o rei Alfonso XII. O regente da Tuna de 1881 era o excelente músico Manuel Valverde, sendo o presidente, Rafael Villar e o abandeirado Pedro Labrada Mendoza. A Tuna de 1885 estava presidida por José Boente Sequeiros e regida pelo grande violinista José Courtier (Cancela, 2013, p. 85). Na função de janeiro desse ano colaboraram com discursos o escritor, poeta e vate, Eduardo Pondal e o médico, jornalista e político, Luís Rodriguez Seoane.

A Tuna de 1886 procurou financiamento noutras cidades, assim as figuras das "madrinhas" e dos "presidentes honorários" implicavam ajudas económicas para a organização dos eventos. O presidente era Manuel Salgado, vice-presidente era José Rodriguez Montero Rios, o cronista, Pablo Perez Costanti, tesoureiro Manuel Otero Acevedo e vocal José Indart. O regente da orquestra era Laureano Rodríguez Villaverde e o do coro Gonzalo Vázquez Iglesias. Nesta tuna participava José Nieto Mendez como intérprete e compositor duma jota e uma valsa com que abriam e encerravam o programa. Nesse ano de 1886, Nieto organiza uma tuna paralela, intitulada La estudiantina compostelana, em cuja apresentação participou o sexteto Curros (Cores, 2001, p. 59).

Mas, no zenite da organização da Tuna, em 1888, o regente era o músico profissional José Gómez Veiga, "Pepe Curros", violinista e fundador do sexteto Curros junto dos seus irmãos, Gerardo e Jesus e o próprio Mariano Fernandez Tafall, sendo o presidente Manuel Otero Acevedo. Curros foi, junto com Otero Acevedo, grande promotor da viagem a Portugal daquele ano, cúmulo da experiência tunística compostelana e inspiração do conhecido romance de Lugin, La casa de la Troya. Em 1889, José Nieto fundava um orfeão formado por vinte componentes e em 1890 seria já regente da Tuna universitária.

Parga, José Courtier e a Tuna Compostelana

A Tuna de 1889 achou o guitarrista ferrolano João Parga em Compostela. Parga tinha amizade com José Courtier e interpretaria, como diz Cores (2001, p. 91), "desfacendo o tópico dos vencellos entre as posibilidades do instrumento máis aló da exclusiva aplicación á música flamenca" as obras Fiesta gallega, o seu arranjo da Alvorada de Veiga e ¡Adiós, Galicia! cujas partituras, talvez por não terem sido publicadas, não se conservam ou permanecem, infelizmente, extraviadas.

Sobre a amizade entre Parga e José Courtier é importante matizar o seguinte: Cores diz que Parga teve amizade com Hilario Courtier, mas Cancela (2013) ao traçar a vida dos componentes da família Courtier deixa claro que Parga só poderia ter coincidido com José. Além disso, a raiz das leituras para o apartado de Cesáreo Alonso Salgado, o guitarrista e autor da afamada música da Cântiga de Curros Henriques (‘Uma noite na eira do trigo’), temos descoberto a possível origem deste erro de Cores, pois Hilario Courtier teve um violinista amigo, possivelmente mindoniense, chamado Enrique Parga Garcia, que dirigiu orquestras de cordofones em Mondonhedo.

O tecido cultural e guitarrístico galego

Da Tuna de 1891 foi presidente Gerardo Doval Rodríguez e regente Saturnino Echevarri (La Monarquia, 1891), sendo os guitarristas Enrique Grimaldos, Francisco Munaiz, Manuel Banet, Severino Trigo, Manuel Carreras, Angel e Manuel Allones, Manuel Varela, Manuel Garcia, Francisco Arbea, Gregório Gondra, Gregório Mirelis e Lino Lopez. De Gregório Mirelis só temos esta notícia, entendemos que seria familiar dos Mirelis compostelanos, possivelmente um dos filhos de Francisco Mirelis Gonzalez e irmão do nosso conhecido Júlio Mirelis Garcia, já tratado nesta série da Mundoclásico.com 

O resto de componentes eram o escritor pontevedrês Henrique Labarta Posse, vice-presidente primeiro. Adolfo Mosquera, vice-presidente segundo. Felipe Saráchaga, tesoureiro. José Medina Veitia, secretário. Comissão: Juan Corton e Severino Bareiro Bustelo. Violinos: Mariano Fernandez Tafall, Álvaro Soto, Álvaro Berasátegui, Álvaro Villaverde e Álvaro Boullon. Violoncelo: Luís Villaverde. Contrabaixo: Luís Fondevila. Flautas: A. Figueras e A. Cabanas. Bandurras: Marcelino Sanjurjo e Antonio Abad. Pianista: Sanjurjo (Marcelino?). Pandeiras: Subizareta, Guerrero e Llamas.

Muitos destes nomes têm personalidade própria na música galega pelo seu contributo como intérpretes, diretores de diversos tipos de agrupamentos e coros, mas também na área das letras, como o poeta, jornalista e desenhador Henrique Labarta Posse, e o também jornalista e diretor da Gaceta de Galicia, Mariano Fernandez Tafall, jornal histórico bem conhecido das leitoras destes artigos.

Uma Tuna grande demais e a guerra em Cuba

A de 1895 era, segundo Cores, grande demais. O presidente era Miguel Martinez de la Riva, contava com mais de 70 membros e elaborou um programa muito ambicioso (Cores, 2001, p. 95).

A partir de 1895, os efeitos da guerra em Cuba começavam a afetar enormemente a sociedade galega. Os estudantes eram todos varões e estavam a ser levados para a guerra, pelo que as estudantinas ficavam sem elementos. Em 1896 e 1897 Alfredo Brañas e Urbano Gonzalez impulsaram a Tuna em que voltava a colaborar Labarta Posse (Cores, 2001, pp. 110-113). Em 1900, o presidente seria Luís Cornide Quiroga, sendo regente o violinista e troiano Álvaro Soto, que também comporia música para a Tuna e seguiria ligado a ela no século XX.  

A Tuna Clássica galega a Paris

Tuna Compostelana do ano 1911. © Dominio público.Tuna Compostelana do ano 1911. © Dominio público.

Nesse ano de 1900, a intitulada Tuna Clásica preparava-se para uma viagem a Paris, sendo presidente o intelectual pontevedrês Víctor Said Armesto (1871-1914). Os instrumentos que a conformavam eram 5 violinos, 1 flauta, 2 bandolins, 3 bandurras, 13 guitarras e 2 pandeiras (La Idea Moderna, 1900). Dentre os componentes, o mais destacado foi o estudante de direito Faustino Santalices como guitarrista, que depois seria o grande cantor de música popular galega e intérprete de sanfona. Em outubro de 1900 uma nota do El Áncora dava conta da visita dos tunos a Paris (1900):

La "Tuna Clásica Española".- Dicen de París que la Reina Isabel ha recibido la visita de la Tuna Clásica Española.
Asistieron á la residencia de la abuela de Alfonso XIII, distinguidas personalidades.
La Tuna, que ejecutó casi todos los números de su repertorio, obtuvo calurosos plácemes.

A composição da Tuna de 1900 publicada em La Idea Moderna era: presidente Víctor Said, vice-presidente German G. Armesto, secretário Urbano Santamaria, tesoureiro Ramon Palacio, contador Benigno G. Neira, vocais Manuel Santos e Agustin Gonzalez. A Comissão organizadora estava formada pelos estudantes de medicina Juan V. Requejo, José Gândara e Antonio Palacio. O abandeirado era o secretário Urbano Santamaria. O regente, o violinista Álvaro Soto. Violinos: German G. Armesto, Manuel Santos, Santiago Paz, Higinio Veiras e Antolin G. Tuñez. Flauta: José Figueroa. Bandolins: Manuel e António Vizoso. Bandurras: José Solla, Ramon Astray e Pio Palácio. Guitarras: Ramon Palácio, Agustin Gamallo, Benigno G. Neira, Virgínio Losada, Maximiliano Piñan, Faustino Santalices, Marcial Vizoso, Fernando Cabello, Salvador Sobredo, German Trincado, Silverio Calvo, Agustin Quiroga e Francisco Lopez. Pandeiras: Emilio G. Castro e Daniel Sestelo.

Seria a Tuna Clásica galega de Álvaro Soto a representante da Espanha em Paris. Algo semelhante deveu acontecer nos tempos da Estudantina de 1878 em que o vice-presidente era, como já tratamos, o guitarrista José Castañeda. Mais para a frente, no apartado de guitarristas pintores veremos mais um fragmento da história da Tuna Compostelana em 1906 através da visão de um dos seus ilustres integrantes, Daniel Castelao.

Os pintores guitarristas  

Ao longo das nossas pesquisas achamos um não pequeno grupo de pintores guitarristas, e/ou violinistas, de final do século XIX e começo do XX, que merece um breve apartado. Depois dos precedentes do período de entreséculos anterior, onde destacavam os desenhos de José Dionisio Valladares, aparecem vários continuadores cujo elo comum é o amor pela música e a guitarra.

Os grandes Ovídio Murguia e Manuel Quiroga Losada acompanham-se de Júlio Mirelis, José Castañeda, Baltasar Piñeiro, Victor Morelli, Ramon Heráclio Fanego Salaverri, Benigno Lopes Samartim e o talentoso caricaturista e magnífico pintor Daniel Castelão que, como guitarrista, foi membro da Tuna nos seus tempos de estudante de Medicina em Compostela. Também o funcionário, arquiteto e guitarrista Javier Pintos Fonseca destacou pelos seus desenhos nunca publicados. Todos eles, de modo desigual, foram amadores da guitarra que também destacavam pela sua atividade pictórica.

Manuel Quiroga Losada foi um autêntico músico profissional cuja carreira internacional como violinista eclipsou o seu ótimo trabalho como pintor. O rianjeiro Castelão foi um intelectual completo que ampliou a sua formação universitária e artística com um elevado compromisso político e social, o qual renovou o pensamento galeguista do seu tempo e assentou as bases do nacionalismo galego moderno. Entre os seus desenhos de músicos, algum dos quais são autorretratos, está o dum homem tocando a guitarra, cujo original é conservado no Museu da Ponte Vedra. Seixas (2019, p. 211) retrata-o assim:

Castelao, alto, delgado, esbrancuxado, con lentes graduadas redondas, as puntas do bigode reviradas cara arriba, á moda, e voz de tenor, incorpórase no outono como primeira corda á nova Tuna Universitaria.

Afonso Daniel Rodrigues Castelão, tuno

Autorretratos de Daniel Castelão, músico. Fonte: Saiz, 2019, p. 18. © 2024 by Isabel Rei Samartim.Autorretratos de Daniel Castelão, músico. Fonte: Saiz, 2019, p. 18. © 2024 by Isabel Rei Samartim.

Seixas está a falar do curso 1905-1906, em que Castelão realizava o seu terceiro ano a estudar na Faculdade de Medicina em Compostela. Na tuna desse ano, Seixas aponta que também figurava como bandurrista da Tuna, Roman Perez da Cal, médico e amigo de Castelão. Perez da Cal foi pai do grande intelectual, filólogo e escritor ferrolano, Ernesto Guerra da Cal. A amizade entre Roman Perez e Castelão foi estudada por Gômez (2009, pp. 24-25).

Mas, parece que Castelao tinha aprendido a tocar guitarra anos antes, na Pampa argentina, aonde tinha ido com a família. Esta informação parte do testemunho de Joaquin Pesqueira refletido em Seixas (2019, I, p. 144): 

Castelao suele decirme con frecuencia que allí aprendió a tañer la guitarra, a cantar vidalitas y a recitar versos de Martín Fierro.

Sempre citando Seixas (2019, I, pp. 212-217), a Tuna Compostelana começa a organizar-se no outono de 1905, ensaia no paço de São Jerome durante o Natal e prepara a saída do próximo Entrudo, já em fevereiro de 1906. Apresenta-se na imprensa em 15 de fevereiro, toca no Teatro Principal de Compostela e depois viaja à Corunha e ao Ferrol. Em 23 de fevereiro os tunos enfiam caminho para Portugal, onde tocam em Lisboa e Coimbra. Dous anos mais tarde, em março de 1908, a Tuna coimbrã visitaria Galiza (Coelho et al., 2012, p. 181). De regresso, praticamente sem dinheiros e recebendo as ajudas dos tunos portugueses, a Tuna Compostelana toca em Vigo no dia 8 de março e no dia a seguir, em Compostela. Castelão deixa um testemunho da sua visita a Portugal no Sempre em Galiza, onde exprime uma crítica aos tunos da Casa da Tróia na linha de Luís Seoane, ao tempo que reflete sobre a riqueza cultural e intelectual portuguesa, que fazia crescer e consolidar-se o sentimento galego e galeguista. Um fragmento do Sempre em Galiza na versão de Vasquez Corredoira (Castelão, 2010, p. 410):

Mas nem todos éramos estudantes da Casa da Tróia. Alguns voltávamos de Portugal com os olhos prenhes de formosura e com o coração fendido de saudades, mui ledos de termos visto ali o nosso próprio génio em liberdade. Também algum de nós trazia livros de versos e aprendia-os de cor. E não era raro que de volta de Portugal um estudante, que bem podia ser o autor deste livro, ficasse mais Galego que dantes e com ânimos de desentolher as possibilidades duma Galiza ceive.

Lembremos que Castelão escrevia isto depois do ano 1935 em que começou a publicar os primeiros retalhos do Sempre..., quando já Luís Seoane tinha integrado a Tuna de 1930 e duas décadas após a primeira publicação do livro de Lugin. Nesse momento, a sensação de que a Casa da Tróia era um núcleo de superficialismos estava consolidada entre o estudantado. Mas, Castelão integra a Tuna em 1905-1906, muito antes de tudo isso acontecer. A investigação histórica sobre a guitarra deixa-nos aqui um exemplo de como a pesquisa musical é capaz de ilustrar processos sociais e políticos como, neste caso, a evolução do pensamento galeguista. Daí que seja imprescindível analisar e entender no seu contexto o papel da Casa da Tróia em favor da história da guitarra e da Galiza.

Referências citadas

  1. Acuña, Xosé Enrique. (2000). As imaxes de Castelao. Fotobiografía. Vigo: A Nosa Terra.
  2. Cancela, Beatriz e Alberto. (2013). La saga Courtier en Galicia. Santiago de Compostela: Alvarellos Editora.
  3. Castelão, Afonso Daniel Rodrigues. (2010). Sempre em Galiza. Compostela: Através Editora.
  4. Coelho, Eduardo, Silva, Jean Pierre, Sousa, João Paulo e Tavares, Ricardo. (2012). Qvid Tvnae?. A Tuna Estudantil em Portugal. Porto, Viseu e Lisboa: CoSaGaPe.
  5. Cores Trasmonte, Bartolomé. (2001). A tuna de Santiago. Galiza: Fundacion Caixa Galicia.
  6. El Áncora. (1900). “La Tuna Clásica Española”. Ponte Vedra: 23 de outubro, p. 3.
  7. Gômez, Joel R. (2009). A trajectória de Ernesto Guerra da Cal nos campos científico e literário. Tese de doutoramento. Compostela: Universidade de Santiago de Compostela.
  8. La Idea Moderna. (1900). “Tuna clásica escolar”. Lugo: 4 de julho, p. 2.
  9. La Monarquia. (1891). Ferrol: 31 de janeiro, pp. 2-3.
  10. Saiz Ocaña, Teresa. (Coord.). (2019). Castelao grafista. Madrid: Fundacion Torrente Ballester.
  11. Seixas Seoane, Miguel Anxo. (2019). Castelao. Construtor da nación. Tomo I. 1886-1930. Vigo-Compostela: Editorial Galaxia.
  12. Villanueva Abelairas, Carlos. (2014). Víctor Said Armesto. Una vida de romance. Compostela: USC.
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